Folha de S. Paulo
Lula quer negociar a soberania dos outros?
"Zelenski não pode querer tudo",
exclamou Lula, indicando a linha que seguiria na visita à China, onde tentou
estabelecer uma parceria com Xi Jinping na mediação de eventuais negociações de
paz entre Rússia e Ucrânia. "Tudo", aí, significa a Crimeia e a Otan.
A primeira renúncia sugerida debilita a posição do Brasil como mediador confiável.
A segunda evidencia uma apreciação primitiva das realidades geopolíticas.
O Brasil, cortesia do Itamaraty de Mauro Vieira, votou na resolução da ONU que exige a retirada imediata das forças invasoras russas e o respeito à integridade territorial ucraniana. A declaração de Lula, cortesia do assessor especial Celso Amorim, renegou o voto brasileiro. A Crimeia faz parte do território ucraniano internacionalmente reconhecido. Nenhuma nação que respeita a Carta da ONU tem o direito de propor a cessão de parte do território de um país soberano invadido –como, aliás, explicou a Ucrânia na sua resposta a Lula.
Não há notícia de algum país, com as óbvias
exceções da Rússia e da Belarus, capaz de indecência similar. Mesmo a China,
com seu vago "plano de paz" que insinua um cessar-fogo temporário
para negociações sem retirada das forças russas, absteve-se de desenhar cessões
territoriais num futuro acordo de paz. O motivo: sob a vigência do princípio da
soberania nacional, só a Ucrânia tem o direito de propor a entrega de áreas do
país a uma potência estrangeira.
É possível imaginar um cenário
político-militar no qual, em nome de sua sobrevivência como nação independente,
a Ucrânia seja obrigada a fazer concessões territoriais. Nada impede que
analistas propensos a exercícios especulativos entreguem-se a traçar nos mapas
as conjecturais fronteiras ucranianas do pós-guerra. Mas chefes de Estado
ocupam lugar diferente. A sugestão aloprada de Lula mancha as credenciais
brasileiras junto ao governo ucraniano, ainda que provoque surtos de felicidade
no Kremlin.
Antes da invasão russa de 2022, a pretensão
da Ucrânia de ingressar na Otan inscrevia-se na esfera das miragens. Os EUA não
contemplavam a hipótese de adesão de um país parcialmente ocupado pela Rússia
desde 2014, o que implicaria confronto direto com uma potência nuclear. A
Alemanha, engajada em estreita cooperação energética com a Rússia, vetava a
candidatura ucraniana. Hoje, porém, para diversos efeitos práticos, a Ucrânia
já entrou na Otan.
Putin colocou a Ucrânia na aliança
ocidental. A noção de neutralidade militar ucraniana podia ser aventada nos
meses iniciais da guerra. Mais de um ano depois, estilhaçou-se em choque com os
fatos. As munições ucranianas, com calibre dos tempos soviéticos, começaram a
se esgotar –e foram substituídas por munições com calibre padrão da Otan.
Transferiram-se à nação invadida os sistemas de artilharia e defesa aérea
americanos e europeus. Tanques e blindados alemães, britânicos e americanos
chegam à frente de batalha. Tropas ucranianas recebem treinamento em países da Otan.
Se a Rússia parar de combater, a guerra
acaba; se a Ucrânia parar de combater, a Ucrânia acaba. Depois da guerra,
exceto no improvável cenário do surgimento de uma Rússia sem Putin e sem
ambições imperiais, a independência ucraniana repousará na proteção da Otan.
Nenhum governo ucraniano, salvo um regime títere de Moscou, desistirá do
ingresso formal na aliança ocidental. Na outra ponta, os EUA e a Otan
experimentariam fatal desmoralização estratégica caso barrassem a entrada da
Ucrânia. Só um Trump poderia desfazer o que Putin fez.
Lula não entendeu a guerra –nem sua
natureza, nem suas implicações. A guerra imperial russa é, do ponto de vista da
Ucrânia, uma guerra nacional de independência. Não se brinca com isso. A
aventura de Putin converteu a Otan em pressuposto da soberania dos vizinhos da
Rússia. Lula quer negociar a soberania dos outros?
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