sábado, 15 de abril de 2023

Eduardo Affonso - O ornitorrinco chamado Brasil

O Globo

Como o mamífero que, na contramão da sua subclasse, bota ovo, o país é uma mistura de surreal com atraso e pitadas de velhas ideologias

O Brasil se presta a muitas comparações. Nos anos 1970, Edmar Bacha nos chamou de Belíndia: leis e riqueza de Bélgica, desigualdade de Índia. Delfim Netto sugeriu Ingana: impostos de Inglaterra, serviços públicos de Gana. Evoluímos para um Dubaiti: privilégios e extravagâncias da cidade de Dubai, vácuo de Estado nas favelas e periferias, à moda do Haiti. Parecemos um ornitorrinco, aquele mostruário de excentricidades, prova viva de que a fidelidade não foi seguida à risca na arca de Noé.

Como o mamífero que, na contramão da sua subclasse, bota ovo, o Brasil é uma mistura de surreal com atraso e pitadas de velhas ideologias. Quase metade da população sobrevive sem acesso a saneamento básico, mas o governo está mais interessado em proteger as empresas estatais que em garantir esgoto e água potável.

Como o mamífero que não tem mamilos, o Brasil é um país rico com cerca de um terço da população abaixo da linha da pobreza. A riqueza existe, mas os canais para sua distribuição não são lá muito ortodoxos.

Assim como o ornitorrinco tem bico de pato, pé de pato e cloaca de pato — mas está longe de ser um pato —, o Brasil tem iniciativa privada e propriedade privada, mas o protecionismo, a burocracia e o patrimonialismo estatal fazem o possível para que não seja uma economia de mercado.

Nas fotos, o ornitorrinco dá a impressão de ser enorme, mas não passa de dois palmos de comprimento. O Brasil é o quinto maior país em área, o sétimo em população e a nona economia — mas continua um tampinha diplomático, um nanico cultural.

Observe o Ornithorhynchus anatinus e a Terra brasilis. O primeiro é um bicho aparentemente fofinho, com esporões conectados a glândulas de veneno. A segunda, lar de um povo que adora memes e inventou o brigadeiro, o pão de queijo, o xaxado, o chorinho, a caipirinha, o chorinho da caipirinha — e deu transcendência ao diminutivo; que chama desconhecidos de “querido”, mistura pizza com abacaxi e dá nó em ChatGPT. Mas tem a oitava maior taxa de violência no mundo: com 2,7% da população do planeta, responde por 20,4% dos homicídios, segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. Ao contrário do que dizia a personagem da Kate Lyra, o brasileiro (assim como o ornitorrinco) não é tão bonzinho.

Outra boa metáfora é a ex-presidenta Dilma Rousseff. Ela fala um inglês macarrônico e intraduzível, mas dispensa o intérprete. (O Brasil tem educação precária — na formação profissional e na de crianças e adolescentes, está em último lugar no Pisa—, mas engata marcha a ré nos avanços propostos pelo Novo Ensino Médio.)

Ela quase quebrou um país e se acha em condições de presidir o banco criado para auxiliar o crescimento e o desenvolvimento de cinco grandes economias. O Brasil sofre derrotas diárias na guerra ao tráfico, às milícias, à dengue, à evasão fiscal, ao desmatamento e ao garimpo ilegais e quer dar pitaco na guerra na Ucrânia.

Como Dilma, bastava ao país ler o que está escrito — seja na Constituição, nos artigos científicos, nos livros de economia — para que tudo desse certo. Mas insiste no improviso e se embanana todo.

Como exotismo pouco é bobagem, talvez nossa melhor metáfora seja um dilmorrinco.

 

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