O Globo
Como o mamífero que, na contramão da sua
subclasse, bota ovo, o país é uma mistura de surreal com atraso e pitadas de
velhas ideologias
O Brasil se presta a muitas comparações.
Nos anos 1970, Edmar Bacha nos chamou de Belíndia: leis e riqueza de Bélgica,
desigualdade de Índia. Delfim Netto sugeriu Ingana: impostos de Inglaterra,
serviços públicos de Gana. Evoluímos para um Dubaiti: privilégios e
extravagâncias da cidade de Dubai, vácuo de Estado nas favelas e periferias, à
moda do Haiti. Parecemos um ornitorrinco, aquele mostruário de excentricidades,
prova viva de que a fidelidade não foi seguida à risca na arca de Noé.
Como o mamífero que, na contramão da sua subclasse, bota ovo, o Brasil é uma mistura de surreal com atraso e pitadas de velhas ideologias. Quase metade da população sobrevive sem acesso a saneamento básico, mas o governo está mais interessado em proteger as empresas estatais que em garantir esgoto e água potável.
Como o mamífero que não tem mamilos, o
Brasil é um país rico com cerca de um terço da população abaixo da linha da
pobreza. A riqueza existe, mas os canais para sua distribuição não são lá muito
ortodoxos.
Assim como o ornitorrinco tem bico de pato,
pé de pato e cloaca de pato — mas está longe de ser um pato —, o Brasil tem
iniciativa privada e propriedade privada, mas o protecionismo, a burocracia e o
patrimonialismo estatal fazem o possível para que não seja uma economia de
mercado.
Nas fotos, o ornitorrinco dá a impressão de
ser enorme, mas não passa de dois palmos de comprimento. O Brasil é o quinto
maior país em área, o sétimo em população e a nona economia — mas continua um
tampinha diplomático, um nanico cultural.
Observe o Ornithorhynchus anatinus e a
Terra brasilis. O primeiro é um bicho aparentemente fofinho, com esporões
conectados a glândulas de veneno. A segunda, lar de um povo que adora memes e
inventou o brigadeiro, o pão de queijo, o xaxado, o chorinho, a caipirinha, o
chorinho da caipirinha — e deu transcendência ao diminutivo; que chama
desconhecidos de “querido”, mistura pizza com abacaxi e dá nó em ChatGPT. Mas
tem a oitava maior taxa de violência no mundo: com 2,7% da população do
planeta, responde por 20,4% dos homicídios, segundo o Escritório das Nações Unidas
sobre Drogas e Crime. Ao contrário do que dizia a personagem da Kate Lyra, o
brasileiro (assim como o ornitorrinco) não é tão bonzinho.
Outra boa metáfora é a ex-presidenta Dilma Rousseff.
Ela fala um inglês macarrônico e intraduzível, mas dispensa o intérprete. (O
Brasil tem educação precária — na formação profissional e na de crianças e
adolescentes, está em último lugar no Pisa—, mas engata marcha a ré nos avanços
propostos pelo Novo Ensino Médio.)
Ela quase quebrou um país e se acha em
condições de presidir o banco criado para auxiliar o crescimento e o
desenvolvimento de cinco grandes economias. O Brasil sofre derrotas diárias na
guerra ao tráfico, às milícias, à dengue, à evasão fiscal, ao desmatamento e ao
garimpo ilegais e quer dar pitaco na guerra na
Ucrânia.
Como Dilma, bastava ao país ler o que está
escrito — seja na Constituição, nos artigos científicos, nos livros de economia
— para que tudo desse certo. Mas insiste no improviso e se embanana todo.
Como exotismo pouco é bobagem, talvez nossa
melhor metáfora seja um dilmorrinco.
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