sábado, 15 de abril de 2023

Almir Pazzianotto Pinto* - A rebelião das massas

O Estado de S. Paulo

Os responsáveis pela governança estavam ausentes enquanto a Praça dos Três Poderes era invadida, ocupada e depredada pela multidão anárquica, sem controle e liderança

Sob a moldura jurídica, os envolvidos nos acontecimentos de 8 de janeiro estão entregues ao julgamento do Poder Judiciário. Aconteceram atos de vandalismo cometidos contra o Palácio do Planalto, o prédio do Congresso Nacional, o edifício do Supremo Tribunal Federal, localizados na Praça dos Três Poderes, onde se encontra permanentemente hasteada a Bandeira do Brasil.

A capital da República, construída pelo presidente Juscelino Kubitschek, é símbolo da Pátria. A Praça dos Três Poderes, com a sua austeridade arquitetônica, deveria refletir o espírito de unidade, independência e harmonia entre o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judiciário.

Nada pior, em qualquer Estado organizado, do que a acefalia do poder. Quando acontece, o vazio passa às mãos de algum aventureiro ou resulta em convulsão anárquica, permitindo que massas descontroladas e enfurecidas assumam o comando da situação.

Na noite de 14 de março de 1985, ao circularem notícias da internação do presidente Tancredo Neves no Hospital de Base, e de que seria submetido a urgente cirurgia, a primeira preocupação consistiu em definir quem lhe ocuparia o lugar. O regime militar findava, mas não estava extinto. Militares remanescentes do governo do presidente João Figueiredo permaneciam no comando de grandes unidades. O tempo corria e era prioritário encontrar solução. Após poucas horas de indecisão, resolveu-se que assumiria o vice-presidente, José Sarney. Minutos antes da hospitalização, Tancredo Neves havia nomeado o novo Ministério. Embora não formalmente empossado, o general Leônidas Pires Gonçalves assumiu o Ministério do Exército. Sem enfrentar oposição, reconheceu José Sarney como presidente da República e comandante supremo das Forças Armadas.

É prematuro tentar entender o que aconteceu entre o melancólico fim do governo de Jair Bolsonaro e o efetivo começo do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. Parece-me evidente, todavia, que as eleições de 30 de outubro aprofundaram a divisão bipolar do País. Derrotado, inconformado e moralmente debilitado, Jair Bolsonaro se recolheu ao silêncio no Palácio da Alvorada, em companhia da esposa, Michelle, e entregou a Nação à própria sorte. Para não passar a faixa presidencial ao vencedor, deixou o Brasil no dia 30 de dezembro e se refugiou nos Estados Unidos.

O novo governo, porém, estava apenas na expectativa de assumir o poder. Lula não tomou a atitude de Tancredo Neves. Refletindo a personalidade insegura que conhecemos, nos primeiros dias de janeiro o Ministério era desconhecido, ou não estava definido. Os partidos que o elegeram criavam problemas de governabilidade. Havia dúvidas sobre os militares que assumiriam o comando do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Especulava-se quem seria o ministro da Defesa. Ignorava-se o nome do futuro diretor da Polícia Federal. A ausência do presidente havia desmobilizado o Gabinete de Segurança Institucional (GSI). O general Hamilton Mourão, vice-presidente da República até 31 de dezembro, senador eleito, mas não empossado, recolheu-se ao silêncio tumular. Se havia assumido a Presidência na vacância de Jair Bolsonaro, ninguém saberia dizer.

A polarização política mantinha o País bipartido. Acreditava-se que a subida da rampa e a passagem de governo deveriam ocorrer em clima de insegurança e, talvez, de violência. Como paliativo, em 28 de dezembro foi baixada medida proibindo o porte de armas em Brasília.

Jornais, emissoras de rádio e de televisão, redes sociais e o boca a boca informavam que milhares de bolsonaristas estavam a caminho de Brasília, valendo-se de aviões comerciais e particulares, ônibus, automóveis, motocicletas. Nas imediações de quartéis se aglomeravam manifestantes para exigir a intervenção das Forçar Armadas. Sem saber o que fazer, os comandantes se omitiam, na esperança de que o tempo os ajudasse a resolver.

O governador Ibaneis Rocha não esteve à altura das necessidades do momento. Desde que a Constituição de 1988 incidiu no erro de permitir ao Distrito Federal eleger governador e deputados distritais, o brasiliense sempre escolheu mal. Como depois se constatou, perdera o comando da Polícia Militar, suspeita de bolsonarismo, como outras polícias militares de diversos Estados.

A ausência de governos federal e distrital, agravada pela falta dos presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado e do Supremo Tribunal Federal em momento de complicada transição do bolsonarismo para o lulismo, criou o vácuo perfeito para desenfreada revolta popular.

Os responsáveis pela governança estavam ausentes enquanto a Praça dos Três Poderes era invadida, ocupada e depredada por multidão anárquica, sem controle e sem liderança. Lula e o Ministério em formação acordaram de prolongada letargia depois que o pior havia sido feito. A responsabilidade recaiu sobre o povo amotinado.

Disse o padre Vieira que a omissão é o pecado que com mais facilidade se comete e raramente se emenda. Foi o que aconteceu. 

*Advogado, autor de ‘A Falsa República’, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.

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