O Estado de S. Paulo
Os responsáveis pela governança estavam ausentes enquanto a Praça dos Três Poderes era invadida, ocupada e depredada pela multidão anárquica, sem controle e liderança
Sob a moldura jurídica, os envolvidos nos
acontecimentos de 8 de janeiro estão entregues ao julgamento do Poder
Judiciário. Aconteceram atos de vandalismo cometidos contra o Palácio do
Planalto, o prédio do Congresso Nacional, o edifício do Supremo Tribunal
Federal, localizados na Praça dos Três Poderes, onde se encontra
permanentemente hasteada a Bandeira do Brasil.
A capital da República, construída pelo presidente
Juscelino Kubitschek, é símbolo da Pátria. A Praça dos Três Poderes, com a sua
austeridade arquitetônica, deveria refletir o espírito de unidade,
independência e harmonia entre o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder
Judiciário.
Nada pior, em qualquer Estado organizado, do que a acefalia do poder. Quando acontece, o vazio passa às mãos de algum aventureiro ou resulta em convulsão anárquica, permitindo que massas descontroladas e enfurecidas assumam o comando da situação.
Na noite de 14 de março de 1985, ao
circularem notícias da internação do presidente Tancredo Neves no Hospital de
Base, e de que seria submetido a urgente cirurgia, a primeira preocupação
consistiu em definir quem lhe ocuparia o lugar. O regime militar findava, mas
não estava extinto. Militares remanescentes do governo do presidente João
Figueiredo permaneciam no comando de grandes unidades. O tempo corria e era
prioritário encontrar solução. Após poucas horas de indecisão, resolveu-se que
assumiria o vice-presidente, José Sarney. Minutos antes da hospitalização,
Tancredo Neves havia nomeado o novo Ministério. Embora não formalmente
empossado, o general Leônidas Pires Gonçalves assumiu o Ministério do Exército.
Sem enfrentar oposição, reconheceu José Sarney como presidente da República e
comandante supremo das Forças Armadas.
É prematuro tentar entender o que aconteceu
entre o melancólico fim do governo de Jair Bolsonaro e o efetivo começo do
terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. Parece-me evidente, todavia, que
as eleições de 30 de outubro aprofundaram a divisão bipolar do País. Derrotado,
inconformado e moralmente debilitado, Jair Bolsonaro se recolheu ao silêncio no
Palácio da Alvorada, em companhia da esposa, Michelle, e entregou a Nação à
própria sorte. Para não passar a faixa presidencial ao vencedor, deixou o
Brasil no dia 30 de dezembro e se refugiou nos Estados Unidos.
O novo governo, porém, estava apenas na
expectativa de assumir o poder. Lula não tomou a atitude de Tancredo Neves.
Refletindo a personalidade insegura que conhecemos, nos primeiros dias de
janeiro o Ministério era desconhecido, ou não estava definido. Os partidos que
o elegeram criavam problemas de governabilidade. Havia dúvidas sobre os
militares que assumiriam o comando do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.
Especulava-se quem seria o ministro da Defesa. Ignorava-se o nome do futuro
diretor da Polícia Federal. A ausência do presidente havia desmobilizado o
Gabinete de Segurança Institucional (GSI). O general Hamilton Mourão,
vice-presidente da República até 31 de dezembro, senador eleito, mas não
empossado, recolheu-se ao silêncio tumular. Se havia assumido a Presidência na
vacância de Jair Bolsonaro, ninguém saberia dizer.
A polarização política mantinha o País
bipartido. Acreditava-se que a subida da rampa e a passagem de governo deveriam
ocorrer em clima de insegurança e, talvez, de violência. Como paliativo, em 28
de dezembro foi baixada medida proibindo o porte de armas em Brasília.
Jornais, emissoras de rádio e de televisão,
redes sociais e o boca a boca informavam que milhares de bolsonaristas estavam
a caminho de Brasília, valendo-se de aviões comerciais e particulares, ônibus,
automóveis, motocicletas. Nas imediações de quartéis se aglomeravam
manifestantes para exigir a intervenção das Forçar Armadas. Sem saber o que
fazer, os comandantes se omitiam, na esperança de que o tempo os ajudasse a
resolver.
O governador Ibaneis Rocha não esteve à
altura das necessidades do momento. Desde que a Constituição de 1988 incidiu no
erro de permitir ao Distrito Federal eleger governador e deputados distritais,
o brasiliense sempre escolheu mal. Como depois se constatou, perdera o comando
da Polícia Militar, suspeita de bolsonarismo, como outras polícias militares de
diversos Estados.
A ausência de governos federal e distrital,
agravada pela falta dos presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado e do
Supremo Tribunal Federal em momento de complicada transição do bolsonarismo
para o lulismo, criou o vácuo perfeito para desenfreada revolta popular.
Os responsáveis pela governança estavam
ausentes enquanto a Praça dos Três Poderes era invadida, ocupada e depredada
por multidão anárquica, sem controle e sem liderança. Lula e o Ministério em
formação acordaram de prolongada letargia depois que o pior havia sido feito. A
responsabilidade recaiu sobre o povo amotinado.
Disse o padre Vieira que a omissão é o pecado que com mais facilidade se comete e raramente se emenda. Foi o que aconteceu.
*Advogado, autor de ‘A Falsa República’, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.
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