Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Exposição “Fuga”, de Marcio Scavone, tem
como referência o legado de sua memória sobre Nova York, Londres, Paris,
México, Roma, Rio, São Paulo e Tóquio
Uma exposição fotográfica, “Fuga”, de
Marcio Scavone, no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, traz até nós a bela e
trabalhosa mostra que ele apresentou antes na Itália, na Sicília. Seu tema é a
cidade e tem como referência o legado de sua memória sobre Nova York, Londres,
Paris, México, Roma, Rio, São Paulo e Tóquio.
Fotografias de cidades têm sido comuns na
história da imagem fotográfica. Não raro, foi o caso aqui no Brasil, fotos do
que restava de um passado que se sabia estava por terminar. Fotos, portanto,
sobre a morte da cidade, a cidade capturada pelo imaginário do passado, de um
foi que não seria mais. A fotografia como um lamento conservador.
A ordenação imaginária da cidade em nome do passado de cada uma tem tentado todos os fotógrafos que a elas se dedicaram. A cidade vista e temida como expressão da desordem da pós-modernidade. A cidade apreciada por aquilo que não era nem é, imaginariamente capturada pelo conservadorismo do interior da casa, concebida como extensão dos cômodos interiores da moradia. De vários modos negação do que a cidade é e pode, o possível, a ruptura, a sociabilidade libertadora das ruas e praças.
É claro que tem havido, também, fotógrafos
que aceitaram das cidades o desafio de um novo modo de ver cenários, pessoas e
monumentos e neles o vivencial do que a cidade efetivamente é. German Lorca, de
quem Scavone foi amigo, foi um dos nossos fotógrafos que se deixaram capturar
pelos desafios próprios da cidade, as revelações de um novo modo de viver, o
das surpresas do inesperado, da temporalidade breve dos minutos. Como se ela
tivesse algo a lhe mostrar, o que não mostrara nem mostraria a mais ninguém, os
segredos de sua intimidade de rua.
Lorca inovou na captura das imagens da
cidade que lhe definiam o que para ele a cidade era. De certo modo, Scavone faz
o mesmo pelo avesso, porque a vê na desordem que é própria da diversidade e
contemporaneidade de imagens do urbano. Sua cidade é de gente que se encontra.
Há em sua fotografia uma revolução visual,
como efetiva construção da imagem, que começa nos clicares das múltiplas
exposições que vão compor a fotografia imaginada e não a do que foi visto. Pois
só estará concluída no laboratório e no computador. Scavone a verá quando cada
cidade que tem dentro de si se der a ver na fotografia resultante.
A memória de Scavone é a personagem do
livro. Ele é o protagonista da imaginação fotográfica. “Fuga” é uma
autobiografia, sua história pessoal sintetizada num modo de ver-se através da
câmera, um eu mediado pela alteridade do mundo, do pedestre sem destino, mais
de quem se busca do que de quem foge.
Também na fotografia há falsa consciência,
o não ser imaginário que julgamos ser, a consciência necessária à superação das
contradições da realidade. A busca da unidade na diversidade. A segurança visual
do todo. Por isso busca e não fuga. As fotos de Scavone são povoadas de humanos
que são obras de arte.
A narrativa visual de um tema complexo como
esse pode ser um desastre na perspectiva tosca e vulgar. Mas pode ser uma
excepcional pintura gris, como é o livro de Scavone e são as fotos nele
contidas e expostas no MIS. A vulgarização do ato fotográfico já cansou,
banalizou a fotografia. O retrato fotográfico conseguiu transformar gente que
se acha bonita em gente feia, porque gente de imagens estereotipadas,
personagem do que de pior existe na sociedade contemporânea que é a repetição e
o repetitivo. Todos têm a mesma cara.
Nessa circunstância, a fotografia de Marcio
Scavone, não só a de “Fuga”, é uma insurreição contra o banal, o imitativo, o
fingimento. Os seres humanos de “Fuga” se mesclam como expressões da arte. Os
seios nus da moça bonita são esculpidos como esculturas clássicas. A nudez da
mulher no cenário das ruas de uma cidade que tem estilo ganha uma dimensão
própria daquilo que a cidade é e revela. Os seres humanos, na mediação do
monumento, são desvendados como criação e não como criatura, libertados da
coisificação.
A função da fotografia, para Scavone, é
revelar o belo e as significações da cidade e não a de retratar coisas e
coisificações, humanos desumanizados. Mesmo o repetitivo e banal em sua
fotografia expressa esse outro lado do mundo, como na foto de uma infestação de
antenas parabólicas pontilhando o mar dos muitíssimos barracos de uma favela. A
beleza na miséria quantitativa.
Suas fotos falam do que a cidade
contemporânea é. A junção sfumata, renascentista, como lembra, de indícios de
uma realidade em processo, inconstituída, de busca e encontro, do dentro que
está fora, libertado pelas obras de arte da circunstância. A cidade como fantasia
e sonho, como utopia da imaginação.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
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