quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Assis Moreira - Nacionalismo e fissuras na economia global

Valor Econômico

A automação e a digitalização estão erodindo oportunidades do modelo tradicional de crescimento econômico e emprego liderado pela indústria

As crises geopolíticas e tensões comerciais continuam a ser grandes ameaças para a economia mundial, mostram publicações recentes de organizações reputadas.

A Organização Mundial do Comércio (OMC) destaca em seu “Relatório sobre o Comércio 2024” como a dinâmica econômica global tem sido afetada por eventos como a rivalidade entre China e Estados Unidos, a invasão da Ucrânia pela Rússia e os conflitos no Oriente Médio. Esse período também marca um aumento nas sanções comerciais e o surgimento de novas formas de armamento comercial (trade weaponization, ou seja, interferência no comércio aberto por motivos geopolíticos), minando a relativa estabilidade que sustentou o crescimento econômico nas últimas três décadas.

Cada vez mais, nota a OMC, as políticas comerciais e econômicas são influenciadas por preocupações com a segurança nacional, caracterizadas por políticas de “friend-shoring”, controles de exportação, restrições ao comércio e fluxos de tecnologia, acordos comerciais discriminatórios setoriais e motivados pela segurança e apelos à autossuficiência.

A constatação é de que as tensões geopolíticas, a revolução tecnológica e a mudança climática representam riscos significativos para a convergência econômica buscada por emergentes em relação a países desenvolvidos, podendo desfazer as conquistas passadas e ameaçar as perspectivas futuras. A fragmentação contínua da economia global (desmonte das relações comerciais e o recurso a políticas unilaterais, em vez de multilaterais) sob pressões geopolíticas representa um grande risco para a redução da pobreza. Até 2030, a estimativa é que dois terços das pessoas extremamente pobres do mundo residirão em economias frágeis ou afetadas por conflitos.

Além disso, a mudança climática já impacta as perspectivas de crescimento econômico nas economias mais vulneráveis e com menos recursos para se recuperar de desastres naturais. Ao mesmo tempo, a automação e a digitalização estão erodindo oportunidades do modelo tradicional de crescimento econômico e emprego liderado pela indústria.

No Banco Internacional de Compensações (BIS, espécie de banco dos bancos centrais), três economistas examinaram a “desconstrução do comércio global: papel do alinhamento geopolítico”. Em valor, o comércio global como fatia do PIB mundial chegou a 26,32% no período da invasão da Ucrânia pela Rússia e caiu em seguida para 22,76%. Em volume, o comércio entre adversários cresceu 2,5% menos do que entre aliados. China, México e EUA são mais dependentes de importações de países geopoliticamente “distantes”.

Além do comércio, o BIS constata que desenvolvimentos em investimentos e tecnologia estão também se fragmentando. O fluxo de Investimento Estrangeiro Direto (IED) está crescentemente concentrado em países alinhados geopoliticamente, deixando alguns mercados emergentes e economias em desenvolvimento vulneráveis à realocação de capital.

Está claro que fissuras na economia mundial podem aumentar com um “splinternet”, pelo qual, em vez da internet global única que existe hoje, surja um número de redes nacionais ou regionais que não falam umas com as outras e que poderiam operar com tecnologias incompatíveis. Segundo simulação da OMC, o PIB global poderia cair em cerca de 1% se os custos comerciais relacionados aos fluxos de dados aumentassem por considerações geopolíticas. Ou poderia aumentar em quase 2% em um cenário de política de dados mais coordenada, o que parece algo difícil diante das tensões atuais.

De seu lado, a diretora-gerente do Banco Central Europeu (BCE), Christine Lagarde, observa que a pior pandemia desde os anos 1920, o pior conflito na Europa desde os anos 1940 e a pior crise energética desde os anos 1970 modificaram a estrutura da economia. E se algumas das mutações são inéditas - como a mudança climática e o envelhecimento das sociedades -, outras parecem àquelas que ocorreram há um século.

Ou seja, para Largarde, a economia global está enfrentando fissuras comparáveis às pressões que resultaram em “nacionalismo economico”, colapso do comércio global na década de 1920 e, por fim, na Grande Depressão. Hoje, como há cem anos, há um choque na integração do comércio mundial e simultaneamente novos avanços tecnológicos. Mas ao seu ver, o que ocorre hoje não é uma verdadeira desglobalização no sentido de reversão do comércio mundial. E sim mais uma modificação da estrutura das cadeias globais de valor, em resposta à maior volatilidade caracterizada por choques de oferta mais frequentes e pela fragmentação geopolítica.

A análise do BCE confirma que os EUA e a zona do euro recentemente diversificaram sua oferta de bens importados, o que provocou um aumento do número de países fornecedores e de custos. Nos EUA, as empresas estudam possibilidades tanto de “deslocamento de proximidade” (“nearshoring”) da produção para o Canadá e México e de “relocalização” (“reshoring”) no país. A Europa privilegia a “relocalização de proximidade” na própria região.

Com relação à revolução digital, Lagarde destaca como as tecnologias financeiras (fintechs) já têm incidência profunda sobre as finanças. Em 2022, fintech gerava 5% da renda bancária mundial, algo entre US$ 150 bilhões e US$ 205 bilhões. Essa parte deverá superar US$ 400 bilhões de agora até 2028, crescimento de 15% por ano.

Tudo isso tem incidência na transmissão da política monetária. Lagarde avisa que aqui também a incerteza para o futuro segue viva.

 

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