quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Maria Cristina Fernandes - Lula assimila vitória da direita

Valor Econômico

Presidente já trata o resultado de domingo como compatível com seu projeto de salvar o país do autoritarismo e devolvê-lo à “civilidade” democrática

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assimilou a vitória da direita e já a trata como um resultado compatível com seu projeto de devolver o país à “civilidade”. Foi o que sugeriu ao fazer seu primeiro discurso depois das eleições de domingo na sanção da Lei do Biocombustível. Como voltou à Presidência depois do pior desempenho do PT numa disputa municipal, a de 2020, urge ouvi-lo.

Ao dizer que é “tempo de colheita” para quem “quer deixar a Presidência com crescimento”, reconheceu o marco das eleições municipais. Se, daqui pra frente, é 2026 que conta, ele vai consolidar o que vê como feitos.

O papelório relegado e a fala de 20 minutos sem os escorregões que têm marcado seus improvisos podem sugerir um presidente nos cascos para a reeleição. Naquele momento, porém, ante plateia do agro, mais parecia Fernando Henrique Cardoso com sinal trocado.

Se FHC contabilizou a entrega do país para a oposição como feito de seu governo, Lula parece ver a manutenção da faixa presidencial no campo democrático, seja sobre os ombros de um aliado ou de um adversário, como compatível com sua missão de livrar o país da ameaça autoritária. Numa tradução livre: “Já fiz minha parte e, agora, cabe a quem também foi vacinado fazer a sua”.

A participação discreta de Lula nas campanhas de seus aliados, de certo modo, já foi uma antecipação disso. Também não passou despercebida a ausência do ministro Fernando Haddad, nome petista de sua algibeira para 2026, da caminhada de Guilherme Boulos (Psol) no sábado, último compromisso de sua campanha à qual quatro ministros, além do presidente, compareceram.

Tampouco se despreze a onipresença do vice Geraldo Alckmin ao lado da candidata de seu partido na capital paulista, Tabata Amaral. O PSB é a maior, entre as legendas do entorno de Lula, em número de prefeituras. E Alckmin, um vice tão discreto e leal quanto José Alencar. Neste evento do biocombustíveis, foi convocado antes do titular. Usou 23 segundos, dedicados a introduzir - e exaltar - o principal orador da cerimônia.

É neste mesmo planeta que mora Gabriel Galípolo, aprovado para presidir o Banco Central com o quórum mais largo de todas as votações do gênero no Senado no século. Foi a primeira votação no Congresso depois do primeiro turno. Pode ser creditada ao apoio do atual presidente da instituição, Roberto Campos Neto e à habilidade do diretor do BC, que fez paciente peregrinação nos gabinetes de senadores e naqueles dos dirigentes de instituições financeiras do país.

Mas não apenas. A trajetória de Galípolo, pupilo de Luiz Gonzaga Belluzzo e assessor de Lula na campanha de 2022, além da proximidade estendida a agendas como a do México, quando o presidente o ciceroneou entre empresários e políticos locais, já teria, em outros tempos, rendido pilhas de manchetes. Desta vez, mercado e Senado não piscaram nem mesmo ante a concomitância da votação com a fala de Lula sobre a taxa de juros (“ainda está alta mas há de ceder”).

A dois anos da sucessão de 2026, todos esses sinais de acomodação parecem precoces. E são. O PT não quer deixar o poder e muita água vai rolar, inclusive em 27 de outubro, mas esta perspectiva de um presidente que se adapta às evidências da dominância conservadora da sociedade abre, no mínimo, um dilema para o futuro do PT. Ao retirar suas fichas da polarização, Lula colide com boa parte de seu partido.

A esquerda tanto se alimenta da polarização quanto é por ela consumido. Basta ver o que se passa em São Paulo. Mas não apenas. Esta campanha marcou um passo adiante na polarização com o advento da teologia da prosperidade, que amealhou 28% dos votos válidos na capital paulista, impulsionou candidaturas majoritárias que foram para o segundo turno em Curitiba e Goiânia e teve a adesão de campeões de voto nas Câmaras Municipais.

Trazem a galope um conjunto de valores que se erguem como uma barreira intransponível à esquerda, cujo identitarismo é identificado como algoz da ordem e da família. Os vereadores mais votados em São Paulo e Belo Horizonte são transfóbicos - um é apoiador de Pablo Marçal e o segundo, do deputado federal Nikolas Ferreira (PL). Os mais votados da esquerda, em ambas as Casas, são mulheres do Psol. A de São Paulo é trans e a de BH se defende como uma “feminista negra”. Suas pautas não estão sobrerrepresentadas na arena legislativa, ainda que, cada vez mais, dominem seus partidos. Na verdade, chegam com tanto atraso que já encontraram a reação armada.

Lula advertiu contra esta armadilha em fevereiro na refiliação de Marta Suplicy ao PT. Já estava claro que a dominância da esquerda pelo identitarismo levaria a encorpar a oposição em torno do ideário pentecostal fundamentalista que ruma para ser majoritário em 2032: quem quer que discorde de suas ideias passa por algoz de sua fé.

Há política fora de São Paulo. No Recife e em Salvador, os vereadores mais votados são egressos das máquinas das políticas sociais de prefeitos reeleitos, em Manaus, é ligado à segurança pública, e, no Rio, o campeão é um ex-balconista cuja plataforma é o fim da jornada de seis dias de trabalho por um de descanso. Contemporânea e transversal, a pauta renova o apelo que, há 40 anos, aportou na política nacional pelas mãos de Lula. Sua eleição é a aposta de que a dominância da direita não traz consigo o fim nem o começo da política, mas sua normalização.

 

Nenhum comentário: