Valor Econômico
Já não somos um país verde e amarelo, apenas
amarelo, com a camisa da seleção brasileira, bolsonorizada. Torcemos pelo time,
mas não pela pátria
Não basta nascer no Brasil para ser
brasileiro. Aos poucos, vamos sendo outra coisa que ainda não sabemos o que
exatamente é. Cada vez mais, muitos nascidos no Brasil gostariam de ter nascido
em outro país. As demonstrações nesse sentido avolumam-se. Agora mesmo, nas
manifestações direitistas e antipatrióticas na avenida Paulista, em favor de
réus de crimes políticos contra o Brasil, muita gente abraçada à bandeira
americana, a aplaudir Trump, o presidente americano que nos vê como fundo de
seu quintal.
Já não somos um país verde e amarelo, apenas amarelo, com a camisa da seleção brasileira, bolsonarizada. A esfera azul é hoje uma bola de futebol. Torcemos pelo time, mas não pela pátria. Um traidor da pátria anexou-se ao quintal da Casa Branca e conspira contra a economia brasileira e contra as instituições brasileiras.
O condomínio familiar de poder que se
instalou mais no Palácio da Alvorada do que no Palácio do Planalto, em governo
anterior, que mais morou e mais desgovernou do que outra coisa, conspira contra
o que somos. Contra aquilo que nos tornamos à custa de privações e de
determinação, de vontade de vencer. O capitalismo brasileiro do
nacional-desenvolvimentismo derrubado pelo golpe de Estado de 1964.
Desde que, em 1942, o imaginativo Walt
Disney, depois de uma vinda ao Brasil, inventou o brasileiro ideológico, tendo
como parceiro o Pato Donald, o depressivo personagem da família do Tio
Patinhas, um brasileiro criado na prancheta começou a nascer. Para nos anexar
nos marcos ideológicos da geopolítica que estava sendo gestada durante a
Segunda Guerra Mundial, a de nova concepção de colônia e de sujeição política.
Dei-me conta disso nestes dias difíceis.
Interesso-me há anos pelo familismo anômalo do milionário infértil da mítica
moedinha número 1, quando publiquei num jornal de Porto Alegre “Tio Patinhas no
centro do universo”. Um texto para compreender o capitalismo inacabado e
inacabável da periferia do planeta. Escrito numa tarde chuvosa de sábado,
correu mundo.
Trata de seres imaginários. Todos ligados por
parentesco suposto e não real, seres castrados. Vinculam-se como tios e primos.
Nenhum é pai ou mãe. Uma família de agregados pelo afã de dinheiro, que nunca
logram obtê-lo. Num mundo em que só o trabalho cria, não trabalham. Fazem de
conta.
De certo modo, nasce um modelo da nova classe
média, a do consumo, já longe da classe trabalhadora que lutou pela ascensão
social como justa recompensa pelo trabalho. Aquela concebida por um dos grandes
empresários brasileiros, industrial, agrícola e financeiro, Antônio da Silva
Prado, um pai da abolição da escravatura em 1888.
Nesse mesmo ano, no Senado do Império, fez um
discurso emblemático em favor do trabalho livre. No lugar do negro caçado a
laço e escravizado, o do tráfico negreiro, o imigrante do trabalho livre
disposto a vir para o Brasil pela possibilidade de se tornar proprietário de
sua própria terra e dono de seu próprio trabalho.
E explicava o imigrante: “Se o colono for
morigerado, sóbrio e laborioso, fará pecúlio e se tornará dono de terra”.
Nessa síntese, a ética do trabalho do que
deveria ser o fundamento de um capitalismo brasileiro. Não há capitalismo sem
técnicas de inclusão social de quem trabalha. Não há capitalismo com exclusão
social e desemprego.
John Maynard Keynes, professor em Cambridge,
teorizou sobre isso em sua teoria do emprego e renda que daria origem ao Estado
do bem-estar social, integrativo.
Vivi e testemunhei alguns dos benefícios
dessa concepção de desenvolvimento econômico com desenvolvimento social quando
fui pesquisador visitante e professor da Universidade de Cambridge. Margaret
Thatcher tentou acabar com isso. A nova direita estava nascendo. Chegaria aqui,
a de um capitalismo do qualquer um que só quer ganhar e não quer distribuir.
O neoliberalismo econômico criou o fascismo
bolsonarista e deu-lhe a cara da dupla ideológica Zé Carioca e Pato Donald. O
pato da dupla é um pato mesmo, um parvo, e o carioca é um malandro que ensina o
tolo Donald a tomar cachaça.
É o que querem nos tornar como gente de
segunda classe da era Trump. Bajuladores, brasileiros de faz de conta e
pseudo-americanos de coisa nenhuma, tirados de casa repentinamente e
despachados de volta para o Brasil todas as semanas, em aviões lotados.
Brasileiros fora do lugar, sobras demográficas. Excesso de contingente.
O Estado americano não gosta de nós. Fomos
amansados. Gostamos da subalternidade. Temos um lambe-botas nos fundos da Casa
Branca.
Não é estranho, portanto, que haja quem vá à
rua para aplaudir e bajular atos antibrasileiros de Trump contra nossa economia
e nossas instituições democráticas.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre
a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).
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