sexta-feira, 8 de agosto de 2025

O brasileiro de fabricação ideológica - José de Souza Martins*

Valor Econômico

Já não somos um país verde e amarelo, apenas amarelo, com a camisa da seleção brasileira, bolsonorizada. Torcemos pelo time, mas não pela pátria

Não basta nascer no Brasil para ser brasileiro. Aos poucos, vamos sendo outra coisa que ainda não sabemos o que exatamente é. Cada vez mais, muitos nascidos no Brasil gostariam de ter nascido em outro país. As demonstrações nesse sentido avolumam-se. Agora mesmo, nas manifestações direitistas e antipatrióticas na avenida Paulista, em favor de réus de crimes políticos contra o Brasil, muita gente abraçada à bandeira americana, a aplaudir Trump, o presidente americano que nos vê como fundo de seu quintal.

Já não somos um país verde e amarelo, apenas amarelo, com a camisa da seleção brasileira, bolsonarizada. A esfera azul é hoje uma bola de futebol. Torcemos pelo time, mas não pela pátria. Um traidor da pátria anexou-se ao quintal da Casa Branca e conspira contra a economia brasileira e contra as instituições brasileiras.

O condomínio familiar de poder que se instalou mais no Palácio da Alvorada do que no Palácio do Planalto, em governo anterior, que mais morou e mais desgovernou do que outra coisa, conspira contra o que somos. Contra aquilo que nos tornamos à custa de privações e de determinação, de vontade de vencer. O capitalismo brasileiro do nacional-desenvolvimentismo derrubado pelo golpe de Estado de 1964.

Desde que, em 1942, o imaginativo Walt Disney, depois de uma vinda ao Brasil, inventou o brasileiro ideológico, tendo como parceiro o Pato Donald, o depressivo personagem da família do Tio Patinhas, um brasileiro criado na prancheta começou a nascer. Para nos anexar nos marcos ideológicos da geopolítica que estava sendo gestada durante a Segunda Guerra Mundial, a de nova concepção de colônia e de sujeição política.

Dei-me conta disso nestes dias difíceis. Interesso-me há anos pelo familismo anômalo do milionário infértil da mítica moedinha número 1, quando publiquei num jornal de Porto Alegre “Tio Patinhas no centro do universo”. Um texto para compreender o capitalismo inacabado e inacabável da periferia do planeta. Escrito numa tarde chuvosa de sábado, correu mundo.

Trata de seres imaginários. Todos ligados por parentesco suposto e não real, seres castrados. Vinculam-se como tios e primos. Nenhum é pai ou mãe. Uma família de agregados pelo afã de dinheiro, que nunca logram obtê-lo. Num mundo em que só o trabalho cria, não trabalham. Fazem de conta.

De certo modo, nasce um modelo da nova classe média, a do consumo, já longe da classe trabalhadora que lutou pela ascensão social como justa recompensa pelo trabalho. Aquela concebida por um dos grandes empresários brasileiros, industrial, agrícola e financeiro, Antônio da Silva Prado, um pai da abolição da escravatura em 1888.

Nesse mesmo ano, no Senado do Império, fez um discurso emblemático em favor do trabalho livre. No lugar do negro caçado a laço e escravizado, o do tráfico negreiro, o imigrante do trabalho livre disposto a vir para o Brasil pela possibilidade de se tornar proprietário de sua própria terra e dono de seu próprio trabalho.

E explicava o imigrante: “Se o colono for morigerado, sóbrio e laborioso, fará pecúlio e se tornará dono de terra”.

Nessa síntese, a ética do trabalho do que deveria ser o fundamento de um capitalismo brasileiro. Não há capitalismo sem técnicas de inclusão social de quem trabalha. Não há capitalismo com exclusão social e desemprego.

John Maynard Keynes, professor em Cambridge, teorizou sobre isso em sua teoria do emprego e renda que daria origem ao Estado do bem-estar social, integrativo.

Vivi e testemunhei alguns dos benefícios dessa concepção de desenvolvimento econômico com desenvolvimento social quando fui pesquisador visitante e professor da Universidade de Cambridge. Margaret Thatcher tentou acabar com isso. A nova direita estava nascendo. Chegaria aqui, a de um capitalismo do qualquer um que só quer ganhar e não quer distribuir.

O neoliberalismo econômico criou o fascismo bolsonarista e deu-lhe a cara da dupla ideológica Zé Carioca e Pato Donald. O pato da dupla é um pato mesmo, um parvo, e o carioca é um malandro que ensina o tolo Donald a tomar cachaça.

É o que querem nos tornar como gente de segunda classe da era Trump. Bajuladores, brasileiros de faz de conta e pseudo-americanos de coisa nenhuma, tirados de casa repentinamente e despachados de volta para o Brasil todas as semanas, em aviões lotados. Brasileiros fora do lugar, sobras demográficas. Excesso de contingente.

O Estado americano não gosta de nós. Fomos amansados. Gostamos da subalternidade. Temos um lambe-botas nos fundos da Casa Branca.

Não é estranho, portanto, que haja quem vá à rua para aplaudir e bajular atos antibrasileiros de Trump contra nossa economia e nossas instituições democráticas.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).

 

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