sexta-feira, 8 de agosto de 2025

O cisne vermelho - Simon Schwartzman

O Estado de S. Paulo

Uma resposta equivocada é dizer que a educação deve se preocupar com as competências, e não mais com o conteúdo

Cisnes negros, na imagem criada por Nassim Taleb (The Black Swan: The Impact of the Highly Improbable, Random House, 2007), são fenômenos inesperados, como uma crise financeira ou a pandemia de covid-19, que forçam pessoas, empresas e instituições a buscar novos caminhos. Cisnes vermelhos são previsíveis, mas afetam de maneira tão profunda os hábitos e as rotinas que as pessoas preferem fingir que não existem, até que seja tarde demais. É essa a imagem que os irmãos Silvio e Luciano Meira usam para descrever o impacto da inteligência artificial (IA) na educação brasileira, num conciso e importante documento cujo título já diz tudo (Inteligência Artificial na Educação: Ruptura Paradigmática em um Sistema em Crise Crônica, Recife, tds.company, 2025).

“Ruptura paradigmática” é um termo complicado para descrever uma situação em que, daqui por diante, tudo será diferente. Os sistemas educacionais, com suas escolas e universidades, foram criados como instituições destinadas a transmitir conhecimentos, de forma semelhante aos sistemas fabris inventados séculos atrás, em que as pessoas são agrupadas em turmas homogêneas e trabalham para incorporar pacotes de conhecimento organizados por especialidade e nível de dificuldade. O que a inteligência artificial faz é tornar todos esses conteúdos misturados e facilmente acessíveis, de maneira quase imediata e a um custo mínimo para o usuário.

Em certo sentido, os sistemas de IA são como os antigos dicionários, enciclopédias e manuais, que colocavam os conhecimentos à disposição de quem sabia pesquisá-los. Um advogado, por exemplo, não precisa memorizar todas as leis e jurisprudência em sua área de especialidade, mas deve ter um mapa mental dos principais textos legais e dos princípios que inspiraram sua construção, de tal forma que ele saiba buscar, em cada situação, as leis que se aplicam e os recursos de que pode dispor, e como organizar os argumentos, conhecimentos e informações para cada situação. Com os modelos de linguagem da inteligência artificial, ele pode perguntar quais leis se aplicam a cada caso, quais os princípios gerais ou filosofias jurídicas que embasam essas leis, se existem controvérsias na jurisprudência, quais as melhores linhas de defesa para seus clientes, pedir que tudo isso seja condensado na forma de uma petição ou arrazoado legal e ter a resposta detalhada e pronta em alguns segundos. Isso vale para uma engenheira que precisa projetar uma ponte ou uma decoradora que precisa mobiliar uma casa: basta saber pedir e o projeto já vem pronto ou quase. E nem precisa fazer a pergunta por escrito: é só dizer o que se quer, em qualquer língua, que o modelo transcreve, redige de forma correta e traduz da língua que for. No limite, nem saber escrever é necessário. Será preciso ainda ser um advogado, engenheiro ou decorador formado em cinco anos para fazer essas coisas, já que o conhecimento agora é uma commodity barata e acessível a qualquer um?

Uma resposta frequente, mas equivocada, é dizer que a educação deve agora se preocupar com as competências, e não mais com o conteúdo dos conhecimentos. Ocorre que não existem competências sem conteúdos. Quando nossos avós decoravam poesias ou repetiam exercícios de matemática, eles adquiriam ao mesmo tempo as competências e os conhecimentos de literatura, linguagem e sistemas numéricos. Um possível caminho, indicado no livro dos irmãos Meira, é o aprendizado baseado em problemas e projetos, em que as pessoas aprendem a fazer perguntas importantes e avaliar as respostas dadas pelos sistemas de inteligência artificial, que muitas vezes podem se perder em alucinações.

Mas ainda não sabemos bem como fazer isso, e não há consenso sobre o impacto que a inteligência artificial terá. Nossas escolas e universidades, que mal conseguem fazer o feijão com arroz da formação básica, já precisam dar meia volta e procurar novos caminhos para formar para um sistema de profissões e um mercado de trabalho que ninguém sabe como será. Silvio e Luciano Meira, em seu texto, propõem o que denominam uma “estratégia proativa e soberana” para enfrentar o desafio, ao longo de quatro grandes eixos: 1) requalificação e empoderamento docente no uso das novas tecnologias; 2) reforma curricular e avaliativa radical, com ênfase em competências; 3) criação de uma infraestrutura pública de IA para a educação; e 4) governança ética e fomento à pesquisa. São propostas importantes, com desdobramentos que merecem ser vistos no detalhe. No entanto, não dá para ser muito otimista, com tantos cisnes de tantas cores que temos pela frente e o fracasso de tantos planos nacionais e estratégias de longo prazo. O mais realista parece ser aprender com os erros da política nacional de informática de meio século atrás e dar prioridade desde logo ao aprendizado no uso dos novos recursos tecnológicos que estão surgindo, por quem tiver condições de tomar a iniciativa e servir de exemplo para os demais. De baixo para cima, sem barreiras e sem esperar que a grande estratégia nacional e soberana se materialize. 

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