Valor Econômico
Ela será mais profundamente defendida quando a
sociedade compreender o risco da nova ordem trumpista e defender de baixo para
cima o país e suas instituições
O Brasil consolidou dois tipos de soberania desde a redemocratização. O
primeiro diz respeito à autonomia do país frente às outras nações. Embora tenha
origens na Independência, esse processo só se firmou com o final da Guerra
Fria, quando o nosso lugar soberano ficou mais claro e destacado no cenário
internacional.
O outro sentido da soberania é a sua faceta popular: a raiz do poder do
Estado nacional está na sociedade e nas instituições que ela própria criou, por
meio da Constituição e de seus representantes. Foi o que a democracia nos legou
de forma inédita. A proposta de nova ordem mundial feita por Trump coloca em
jogo essas duas enormes conquistas.
O tarifaço chegou, mas com muitas exceções que reduzem bem o impacto da medida. Mas muitas coisas poderão ser feitas ainda por Trump em temas estratégicos, de modo que a soberania brasileira, em seu duplo sentido, estará em jogo pelo menos até as eleições de 2026.
Esse cenário pode ser de menor impacto se a popularidade de Trump e sua
estratégia internacional fracassar nos próximos meses, culminando com a derrota
na disputa de meio de mandato, com a perda da maioria na Câmara e/ou no Senado.
Porém, o contrário pode acontecer: o trumpismo forte por quatro anos
desestabilizará por completo a ordem internacional.
O problema da política internacional de Trump, na verdade, vai muito
além do Brasil. Ele está colocando em jogo a capacidade soberana de os países
ou blocos regionais, como a União Europeia, defenderem suas posições.
Claro que já havia assimetrias entre as nações antes do trumpismo,
contudo tais desigualdades tinham sido minoradas pelas instituições
multilaterais construídas no pós-Segunda Guerra e, mais recentemente, pela
conformação mais multipolar do poder mundial, o que estava tornando cada vez
mais difícil que o interesse de um único país hegemônico predominasse sobre os
demais.
Foi esse novo contexto que produziu vários modelos cooperativos de
relacionamento do mundo, desde a defesa de temas relativos à humanidade, como
os direitos humanos, o meio ambiente e a educação, como parcerias regionais (ao
estilo da União Europeia) ou de países semelhantes, como os Brics
Trump luta contra esse mundo com muitas nações soberanas, dispostas a
cooperar entre si em torno da comunhão de interesses ou de questões que valham
para toda a humanidade. Não que antes a estrutura internacional fosse
completamente harmônica e tivesse acabado com as assimetrias, como bem sabem as
guerras na África ou a própria invasão da Ucrânia.
Mas, mesmo com defeitos, a ordem pós-Guerra Fria gerou um maior
pluralismo na distribuição do poder e a busca de um sentido normativo mais
amplo para o mundo, como foi o esforço do Acordo de Paris, em 2015, e poderia
ser agora a nova COP de Belém, no final desse ano. Só que o trumpismo torna
muito difícil que os EUA entoem novamente o “We are the world, we are the
children”, criação belíssima de Michael Jackson e Lionel Richie.
O objetivo da guerra comercial de Trump vai além da economia. O jogo das
tarifas serve para mostrar quem manda no mundo. O “Make America Great Again”
não vale só para o âmbito interno. Seu sentido maior é criar uma hegemonia
americana única e sem nenhum contrapeso. Um império de fato, inclusive capaz de
interferir na política no interior dos países.
É aqui que se atinge o outro sentido da soberania: o trumpismo comanda
um grupo de atuação internacional contra a democracia. Trata-se do eixo do
autoritarismo de extrema direita, com força crescente em várias partes do
mundo, e que será ainda mais forte quanto mais os Estados Unidos construírem
uma hegemonia capaz de interferir na dinâmica interna dos países.
Obviamente que a capacidade de intervenção varia segundo o
desenvolvimento e o poderio das nações. Mesmo assim, se Trump prolongar seu
poder ao longo do tempo, sobrarão muitos poucos com possibilidade de defender
sua dupla soberania.
O Brasil precisa compreender esse sentido maior do fenômeno trumpista e
qual é seu lugar específico neste projeto de nova ordem mundial. Há três
dimensões que podem nos afetar. A primeira é a relação com a China e,
secundariamente, os Brics.
Os Estados Unidos sob Trump vão tentar fazer de tudo para evitar uma
aliança muito forte entre os governos brasileiro e chinês. Ter o maior e mais
importante país da América Latina - e o segundo mais relevante em toda a
América - ligado fortemente ao maior inimigo da hegemonia americana é algo que
o trumpismo não admite e usará várias formas de poder contra essa parceria.
No fundo, Trump quer que o Brasil faça uma escolha entre os EUA e a
China. Não está se pedindo, por ora, o cancelamento de todo o intercâmbio
comercial, algo que seria inviável nas atuais circunstâncias. Mas o trumpismo
quer que se defina qual é o aliado preferencial em termos geopolíticos. Para os
interesses brasileiros de longo prazo, não é desejável ter “relações carnais”
com nenhuma potência, sendo preferível jogar cooperativamente em todas as casas
do mapa-múndi.
Por essa razão é preciso fazer o acordo com a União Europeia, continuar
as parcerias com a América Latina e com os Brics, ampliar ainda mais relações
políticas e econômicas com outras partes do mundo (como Japão, Austrália,
Oriente Médio, África, entre outros), tudo isso mantendo vários canais de
relacionamento com os Estados Unidos. Esse projeto multipolar, no entanto,
depende da capacidade de atuar interna e externamente de forma soberana.
A segunda dimensão diz respeito às características brasileiras que podem
potencializar o poder e a prosperidade dos Estados Unidos. É a produção
agropecuária de ponta do Brasil, sua energia e capacidade hídrica, seus
minerais, os setores tecnológicos de ponta que dominamos (o Pix e os aviões da
Embraer são bons casos aqui), uma população grande como mercado consumidor e
seu poder regional.
Defender a soberania não é evitar parcerias e cooperação, fechando-se em
relação ao mundo. O desenvolvimento envolve trocas entre os países,
compartilhamento de conhecimento e complementaridade econômica, coisas que
podem - como já são - ser realizadas com os EUA.
Soberania é autonomia para escolher como trocar e cooperar com outros
países. No jogo trumpista de poder, só importa a vitória completa dos Estados
Unidos. Basta ver suas propostas para a Ucrânia, trocando a dominação e a
exploração das terras raras pelo fim da guerra com a Rússia, para a Faixa de
Gaza, que ficaria em paz em troca de se transformar num resort da família
Trump, e mesmo para o Canadá, que deveria se tornar o 51º estado dos EUA.
Seguir essa lógica seria um desastre para o Brasil, que ganharia muito com
parcerias internacionais, mas não com projetos neocolonialistas.
Aceitar que os Estados Unidos definam como nossas instituições
democráticas devem funcionar é a terceira e mais terrível dimensão de perda de
soberania. Quem defende isso é traidor da pátria e joga fora a maior conquista
da sociedade brasileira: a capacidade de se autogovernar democraticamente.
Ao se aliar nesse projeto trumpista, o bolsonarismo destrói as bases de
um Brasil soberano. Quem acompanhar essa traição ou não gritar contra os planos
da família Bolsonaro não merece o respeito mínimo dos brasileiros que amam seu
país e querem um futuro melhor e independente para seus filhos e netos.
Diante desse cenário, o risco à soberania brasileira vai além desta
semana. Três coisas fundamentais deveriam ser feitas para evitar a perda de
nossa independência nacional. A primeira é compreender melhor quais são os
elementos essenciais para o nosso futuro e criar as condições institucionais
para que tenhamos autonomia para nos desenvolver em parceria com o mundo.
Definir bem nossas verdadeiras riquezas e como potencializá-las é urgente.
Além disso, é preciso que as forças políticas que não se perfilam entre
os traidores da pátria se unam em defesa da dupla soberania de que
necessitamos. De forma mais direta, as forças de centro e o lulismo podem ter
suas divergências, apresentar até candidatos presidenciais separados, mas
precisam estar juntos no essencial e lutar contra a aliança do bolsonarismo com
a extrema direita internacional.
Por vezes, o centrismo tem medo do impacto de ir contra Bolsonaro, e,
por vezes, o governismo petista não consegue sair de seu próprio casulo
sectário. Agora chegou a hora de serem mais cooperativos para salvarem o
Brasil, sem perder suas especificidades.
A soberania será mais profundamente defendida quando a sociedade, por
meio de suas associações e parcerias entre diversos grupos, compreender o risco
da nova ordem trumpista e defender de baixo para cima o país e suas
instituições. O povo soberano é maior do que os partidos e os governos, mas
precisa se organizar e se mobilizar contra quem quer enfraquecer nossa economia
e nossa autonomia nacional. Agora chegou a hora de construir um verdadeiro
patriotismo para enfrentar a grande onda internacional - com parceiros
bolsonaristas locais - que pode nos levar de volta ao triste passado do
colonialismo.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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