sexta-feira, 1 de agosto de 2025

O futuro da soberania brasileira - Fernando Abrucio

Valor Econômico

Ela será mais profundamente defendida quando a sociedade compreender o risco da nova ordem trumpista e defender de baixo para cima o país e suas instituições

O Brasil consolidou dois tipos de soberania desde a redemocratização. O primeiro diz respeito à autonomia do país frente às outras nações. Embora tenha origens na Independência, esse processo só se firmou com o final da Guerra Fria, quando o nosso lugar soberano ficou mais claro e destacado no cenário internacional.

O outro sentido da soberania é a sua faceta popular: a raiz do poder do Estado nacional está na sociedade e nas instituições que ela própria criou, por meio da Constituição e de seus representantes. Foi o que a democracia nos legou de forma inédita. A proposta de nova ordem mundial feita por Trump coloca em jogo essas duas enormes conquistas.

O tarifaço chegou, mas com muitas exceções que reduzem bem o impacto da medida. Mas muitas coisas poderão ser feitas ainda por Trump em temas estratégicos, de modo que a soberania brasileira, em seu duplo sentido, estará em jogo pelo menos até as eleições de 2026.

Esse cenário pode ser de menor impacto se a popularidade de Trump e sua estratégia internacional fracassar nos próximos meses, culminando com a derrota na disputa de meio de mandato, com a perda da maioria na Câmara e/ou no Senado. Porém, o contrário pode acontecer: o trumpismo forte por quatro anos desestabilizará por completo a ordem internacional.

O problema da política internacional de Trump, na verdade, vai muito além do Brasil. Ele está colocando em jogo a capacidade soberana de os países ou blocos regionais, como a União Europeia, defenderem suas posições.

Claro que já havia assimetrias entre as nações antes do trumpismo, contudo tais desigualdades tinham sido minoradas pelas instituições multilaterais construídas no pós-Segunda Guerra e, mais recentemente, pela conformação mais multipolar do poder mundial, o que estava tornando cada vez mais difícil que o interesse de um único país hegemônico predominasse sobre os demais.

Foi esse novo contexto que produziu vários modelos cooperativos de relacionamento do mundo, desde a defesa de temas relativos à humanidade, como os direitos humanos, o meio ambiente e a educação, como parcerias regionais (ao estilo da União Europeia) ou de países semelhantes, como os Brics

Trump luta contra esse mundo com muitas nações soberanas, dispostas a cooperar entre si em torno da comunhão de interesses ou de questões que valham para toda a humanidade. Não que antes a estrutura internacional fosse completamente harmônica e tivesse acabado com as assimetrias, como bem sabem as guerras na África ou a própria invasão da Ucrânia.

Mas, mesmo com defeitos, a ordem pós-Guerra Fria gerou um maior pluralismo na distribuição do poder e a busca de um sentido normativo mais amplo para o mundo, como foi o esforço do Acordo de Paris, em 2015, e poderia ser agora a nova COP de Belém, no final desse ano. Só que o trumpismo torna muito difícil que os EUA entoem novamente o “We are the world, we are the children”, criação belíssima de Michael Jackson e Lionel Richie.

O objetivo da guerra comercial de Trump vai além da economia. O jogo das tarifas serve para mostrar quem manda no mundo. O “Make America Great Again” não vale só para o âmbito interno. Seu sentido maior é criar uma hegemonia americana única e sem nenhum contrapeso. Um império de fato, inclusive capaz de interferir na política no interior dos países.

É aqui que se atinge o outro sentido da soberania: o trumpismo comanda um grupo de atuação internacional contra a democracia. Trata-se do eixo do autoritarismo de extrema direita, com força crescente em várias partes do mundo, e que será ainda mais forte quanto mais os Estados Unidos construírem uma hegemonia capaz de interferir na dinâmica interna dos países.

Obviamente que a capacidade de intervenção varia segundo o desenvolvimento e o poderio das nações. Mesmo assim, se Trump prolongar seu poder ao longo do tempo, sobrarão muitos poucos com possibilidade de defender sua dupla soberania.

O Brasil precisa compreender esse sentido maior do fenômeno trumpista e qual é seu lugar específico neste projeto de nova ordem mundial. Há três dimensões que podem nos afetar. A primeira é a relação com a China e, secundariamente, os Brics.

Os Estados Unidos sob Trump vão tentar fazer de tudo para evitar uma aliança muito forte entre os governos brasileiro e chinês. Ter o maior e mais importante país da América Latina - e o segundo mais relevante em toda a América - ligado fortemente ao maior inimigo da hegemonia americana é algo que o trumpismo não admite e usará várias formas de poder contra essa parceria.

No fundo, Trump quer que o Brasil faça uma escolha entre os EUA e a China. Não está se pedindo, por ora, o cancelamento de todo o intercâmbio comercial, algo que seria inviável nas atuais circunstâncias. Mas o trumpismo quer que se defina qual é o aliado preferencial em termos geopolíticos. Para os interesses brasileiros de longo prazo, não é desejável ter “relações carnais” com nenhuma potência, sendo preferível jogar cooperativamente em todas as casas do mapa-múndi.

Por essa razão é preciso fazer o acordo com a União Europeia, continuar as parcerias com a América Latina e com os Brics, ampliar ainda mais relações políticas e econômicas com outras partes do mundo (como Japão, Austrália, Oriente Médio, África, entre outros), tudo isso mantendo vários canais de relacionamento com os Estados Unidos. Esse projeto multipolar, no entanto, depende da capacidade de atuar interna e externamente de forma soberana.

A segunda dimensão diz respeito às características brasileiras que podem potencializar o poder e a prosperidade dos Estados Unidos. É a produção agropecuária de ponta do Brasil, sua energia e capacidade hídrica, seus minerais, os setores tecnológicos de ponta que dominamos (o Pix e os aviões da Embraer são bons casos aqui), uma população grande como mercado consumidor e seu poder regional.

Defender a soberania não é evitar parcerias e cooperação, fechando-se em relação ao mundo. O desenvolvimento envolve trocas entre os países, compartilhamento de conhecimento e complementaridade econômica, coisas que podem - como já são - ser realizadas com os EUA.

Soberania é autonomia para escolher como trocar e cooperar com outros países. No jogo trumpista de poder, só importa a vitória completa dos Estados Unidos. Basta ver suas propostas para a Ucrânia, trocando a dominação e a exploração das terras raras pelo fim da guerra com a Rússia, para a Faixa de Gaza, que ficaria em paz em troca de se transformar num resort da família Trump, e mesmo para o Canadá, que deveria se tornar o 51º estado dos EUA. Seguir essa lógica seria um desastre para o Brasil, que ganharia muito com parcerias internacionais, mas não com projetos neocolonialistas.

Aceitar que os Estados Unidos definam como nossas instituições democráticas devem funcionar é a terceira e mais terrível dimensão de perda de soberania. Quem defende isso é traidor da pátria e joga fora a maior conquista da sociedade brasileira: a capacidade de se autogovernar democraticamente.

Ao se aliar nesse projeto trumpista, o bolsonarismo destrói as bases de um Brasil soberano. Quem acompanhar essa traição ou não gritar contra os planos da família Bolsonaro não merece o respeito mínimo dos brasileiros que amam seu país e querem um futuro melhor e independente para seus filhos e netos.

Diante desse cenário, o risco à soberania brasileira vai além desta semana. Três coisas fundamentais deveriam ser feitas para evitar a perda de nossa independência nacional. A primeira é compreender melhor quais são os elementos essenciais para o nosso futuro e criar as condições institucionais para que tenhamos autonomia para nos desenvolver em parceria com o mundo. Definir bem nossas verdadeiras riquezas e como potencializá-las é urgente.

Além disso, é preciso que as forças políticas que não se perfilam entre os traidores da pátria se unam em defesa da dupla soberania de que necessitamos. De forma mais direta, as forças de centro e o lulismo podem ter suas divergências, apresentar até candidatos presidenciais separados, mas precisam estar juntos no essencial e lutar contra a aliança do bolsonarismo com a extrema direita internacional.

Por vezes, o centrismo tem medo do impacto de ir contra Bolsonaro, e, por vezes, o governismo petista não consegue sair de seu próprio casulo sectário. Agora chegou a hora de serem mais cooperativos para salvarem o Brasil, sem perder suas especificidades.

A soberania será mais profundamente defendida quando a sociedade, por meio de suas associações e parcerias entre diversos grupos, compreender o risco da nova ordem trumpista e defender de baixo para cima o país e suas instituições. O povo soberano é maior do que os partidos e os governos, mas precisa se organizar e se mobilizar contra quem quer enfraquecer nossa economia e nossa autonomia nacional. Agora chegou a hora de construir um verdadeiro patriotismo para enfrentar a grande onda internacional - com parceiros bolsonaristas locais - que pode nos levar de volta ao triste passado do colonialismo.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

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