Valor Econômico
O esquema montado por Bolsonaro e sua família é o de um modelo
de condomínio familiar. Usa a trama do parentesco como um único e peculiar
sujeito político
O golpe de Estado, segundo os indícios, planejado por Bolsonaro
e em julgamento no STF pode não ter sido mera tentativa. Um conjunto extenso de
ocorrências, de comportamentos e de reiterações de conduta continuados após o
fim do governo Bolsonaro sugere que o golpe foi dado e instituiu um regime
político paralelo, alienado, disseminado e ativo.
Utilizando as próprias normas da lei, os Bolsonaros mostraram
competência familística para atrair, aliciar e sujeitar gente como os
bolsonaristas. Os que têm a mesma ambição de agregar e dominar. A
espantosamente larga massa de políticos com vontade de poder. Os que, como
eles, não têm nenhum talento para a democracia.
Não só eles são carentes de talento para o exercício das funções próprias da política, que são impessoais funções de Estado. Também os que deles se diferenciam mais por fatores de circunstância. São políticos de segunda classe.
De certo modo, o falso grupo de centro da política brasileira é
apenas uma facção política residual, funcionalmente bolsonarista ou
funcionalmente qualquer coisa por omissão. Querem o poder, mas não querem as
responsabilidades políticas e morais do poder, para o que é preciso ter a
competência que não possuem, como ocorre com os bolsonaristas, na bajulação
carneiril ao autoritarismo.
O bolsonarismo acha que inventou o golpe de Estado preventivo
contra a possibilidade e a necessidade democrática da alternância de poder. É
uma corrente ideológica antidemocrática, mas inventiva. Joga com os ardis
ocultos na forma meramente democrática do Estado brasileiro.
Para seus militantes, governar é conspirar contra a democracia.
Bolsonaro, desde o primeiro dia do seu mandato, demonstrou ter tacitamente
renunciado a ele, em favor do porta-voz do neoliberalismo econômico
antissocial.
Nos quatro anos do mandato, o Brasil foi dominado por fantasmas
da política, por assombrações, como ocorrera durante a ditadura militar, no
mandato do general Emílio Garrastazu Médici. Escolhido a propósito, quando a
Presidência da República foi ocupada de fato pelo chamado “sistema”, o grupo
secreto de militares da extrema direita.
Dobravam as oposições com prisões, tortura, desaparecimentos e
assassinatos. Não raro, civis assistiam a sessões de tortura, como se fossem
espetáculos de civismo.
Bolsonaro montou um esquema de acesso ao poder e de manutenção
do poder em suas mãos, que permitisse manipular as formalidades legais do
sistema eleitoral contra o espírito da lei, este baseado no pressuposto de
alternância do poder. Ele conseguiu criar um esquema em que oficiais-generais
batem continência para um capitão, que neles manda.
Enquanto milhares de brasileiros morriam sufocados por falta de
vacinas contra covid, ao lado do então presidente da República, que dera a
ordem para cancelar as vacinas do Butantã, o general ministro da Saúde explicou
por que fora cancelado o respectivo protocolo de compra: “É simples assim: um
manda e o outro obedece”. Ambos rindo e sem a máscara protetiva. O ministro era
portador do vírus, já havia contraído covid.
O esquema montado por Bolsonaro e sua família é o de um modelo de condomínio
familiar de poder. Aos poucos, as queixas e reclamações da família, suas
contradições e fragilidades mostram o que é. Usa a trama do parentesco como um
único e peculiar sujeito político.
Atualiza e militariza o modelo de política do “coronelismo”
brasileiro contra o qual se alçaram os tenentes das revoluções tenentistas dos
anos 1920. Que desestruturaram o Estado brasileiro. Que se associaram a Getúlio
Vargas na Revolução de Outubro de 1930. Ficaram mais ou menos no poder até 1º
de abril de 1964, quando finalmente deram o golpe e derrubaram o governo
constitucional.
Bolsonaro é o filho irrelevante da ditadura. Não participou dela
e não teve nela nenhuma expressão. Há uma certa infantilidade em seu empenho de
continuar a ditadura derrubada pelo movimento político das Diretas Já e pela
Constituição democrática de 1988.
O retrógrado modelo condominial de poder de Bolsonaro depende
muito de uma coalização de atrasos sociais. Como a subversão das religiões
evangélicas para delas fazer muletas do governo invisível. É o que mostra a
massa que age como se o país não tivesse um novo governo a partir de 1º de
janeiro de 2023. As igrejas protestantes e evangélicas foram subjugadas pela
manipulação anticristã.
Bolsonaro, com sua religiosidade familiar de imitação, de um só
versículo e não da Bíblia inteira, conseguiu virar os protestantes e
evangélicos do avesso. Não são igrejas do púlpito, mas igrejas do gazofilácio.
Não as do livre exame, mas de igrejas da falta de liberdade no exame da palavra
de Deus.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).
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