sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Copacabana me fez lembrar do tempo em que conheci Caetano. Por Marcos Augusto Gonçalves

Folha de S. Paulo

Em 1977, convidei Caetano a participar de um show para alertar sobre a prisão de colegas militantes; ele foi e cantou 'Leãozinho'

Foi emocionante ver agora o reencontro dele com Chico e Gil, trinca que estava na linha de frente cultural contra a ditadura

Das manifestações em diversas cidades brasileiras, no dia 21 de setembro, a de Copacabana foi a mais bonita e vibrante. Sou suspeito ao falar da Princesinha do Mar, a mais linda das praias, eu que passei boa parte da infância e juventude no Posto 6 —mas quem há de negar que aquele domingo político-musical, mais que demais, foi o superbacana?

Sabemos que a primeira reação da cultura ao golpe de 1964 veio com o musical "Opinião", direção de Augusto Boal e textos de Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes, com as memoráveis estrelas Nara Leão (depois substituída por Maria Bethânia), Zé Keti e João do Vale.

A drástica mudança política, com a tomada do poder por generais apoiados por empresários e setores das classes médias, foi um grande baque para a área cultural. O Brasil vinha no pós-Guerra com uma série de experimentos ousados e bem-sucedidos em todos os ramos, da arquitetura ao teatro, passando pelo cinema, pelas artes plásticas, pela literatura.

Seguia em cena um verdadeiro surto de imaginação e capacidade realizadora, que já nos tinha dado a poesia concreta, a arte construtiva, a bossa nova, Guimarães Rosa e o início do cinema novo, para citar alguns exemplos. Foi contudo a música popular, neste Brasil que pode ser um absurdo, mas não é surdo, que por uma série de razões acabou assumindo o papel de catalisadora no ambiente conturbado pelo golpe militar —e também pelas inquietações estéticas e políticas que surgiam por toda parte, com os movimentos jovens, as lutas por direitos civis, contra o racismo e a discriminação de gênero.

A bossa nova, que realizara uma síntese moderna e popular admirável de nossa canção, a ponto de sugerir uma ideia mesmo de país, sofreu a mudança dos ventos, com sua semântica do amor, do sorriso e da flor, que perdia sentido diante da brutalidade que se instaurava.

A nova geração, agora já nos 80, que estava lá representada no ato de Copacabana, com Chico, Gil e Caetano na proa, tomou a dianteira, num contexto em que canção de protesto, nacionalismo, experimentação e cultura de massas interagiam de maneira rica e polêmica.

Em todos os vetores, dos hinos exortativos de Geraldo Vandré ao tropicalismo do grupo baiano, passando pela maestria de Chico e Milton, e pelo talento de tantos outros, a música popular sempre esteve na linha de frente cultural da contestação à ditadura militar.

De 1964 a 1988, vivi dos oito aos 32 anos sob o regime autoritário, tempos de agitação e de sufoco. Vim a conhecer Caetano Veloso em 1977, ao convidá-lo, com uma amiga, entre certa hesitação de alguns de nossos amigos militantes, para participar de um show com vários artistas com o objetivo de chamar a atenção sobre a prisão de colegas do movimento estudantil.

Depois de telefonemas e uma visita ao apartamento térreo no Leblon, ele, para minha surpresa, apareceu e cantou, entre outras, "Leãozinho". Isso apesar de um bilhetinho de mau gosto da plateia o ameaçando caso apresentasse ali o hoje clássico, que parte da esquerda da época via como alienação.

Que esses protagonistas da cultura e da luta pela democracia tenham se apresentado para velhas e novas gerações, contra forças reacionárias ainda presentes, foi uma emoção e um alento.

 

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