Folha de S. Paulo
Em 1977, convidei Caetano a participar de um
show para alertar sobre a prisão de colegas militantes; ele foi e cantou
'Leãozinho'
Foi emocionante ver agora o reencontro dele
com Chico e Gil, trinca que estava na linha de frente cultural contra a
ditadura
Das manifestações
em diversas cidades brasileiras, no dia 21 de setembro, a de Copacabana foi
a mais bonita e vibrante. Sou suspeito ao falar da Princesinha do Mar, a mais
linda das praias, eu que passei boa parte da infância e juventude no Posto 6
—mas quem há de negar que aquele domingo político-musical, mais que demais, foi
o superbacana?
Sabemos que a primeira reação da cultura ao
golpe de 1964 veio com o musical
"Opinião", direção de Augusto Boal e textos de Armando Costa,
Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes, com as memoráveis estrelas Nara Leão
(depois substituída por Maria Bethânia), Zé Keti e João do Vale.
A drástica mudança política, com a tomada do poder por generais apoiados por empresários e setores das classes médias, foi um grande baque para a área cultural. O Brasil vinha no pós-Guerra com uma série de experimentos ousados e bem-sucedidos em todos os ramos, da arquitetura ao teatro, passando pelo cinema, pelas artes plásticas, pela literatura.
Seguia em cena um verdadeiro surto de
imaginação e capacidade realizadora, que já nos tinha dado a poesia concreta, a
arte construtiva, a bossa nova, Guimarães Rosa e o início do cinema novo, para
citar alguns exemplos. Foi contudo a música popular, neste Brasil que pode ser
um absurdo, mas não é surdo, que por uma série de razões acabou assumindo o
papel de catalisadora no ambiente conturbado pelo golpe militar —e também pelas
inquietações estéticas e políticas que surgiam por toda parte, com os
movimentos jovens, as lutas por direitos civis, contra o racismo e a
discriminação de gênero.
A bossa nova, que realizara uma síntese
moderna e popular admirável de nossa canção, a ponto de sugerir uma ideia mesmo
de país, sofreu a mudança dos ventos, com sua semântica do amor, do sorriso e
da flor, que perdia sentido diante da brutalidade que se instaurava.
A nova geração, agora já nos 80, que estava
lá representada
no ato de Copacabana, com Chico, Gil e Caetano na proa, tomou a dianteira,
num contexto em que canção de protesto, nacionalismo, experimentação e cultura
de massas interagiam de maneira rica e polêmica.
Em todos os vetores, dos hinos exortativos de
Geraldo Vandré ao tropicalismo do grupo baiano, passando pela maestria de Chico
e Milton, e pelo talento de tantos outros, a música popular sempre esteve na
linha de frente cultural da contestação à ditadura militar.
De 1964 a 1988, vivi dos oito aos 32 anos sob
o regime autoritário, tempos de agitação e de sufoco. Vim a conhecer Caetano
Veloso em 1977, ao convidá-lo, com uma amiga, entre certa hesitação de alguns
de nossos amigos militantes, para participar de um show com vários artistas com
o objetivo de chamar a atenção sobre a prisão de colegas do movimento
estudantil.
Depois de telefonemas e uma visita ao
apartamento térreo no Leblon, ele, para minha surpresa, apareceu e cantou,
entre outras, "Leãozinho". Isso apesar de um bilhetinho de mau gosto
da plateia o ameaçando caso apresentasse ali o hoje clássico, que parte da
esquerda da época via como alienação.
Que esses protagonistas da cultura e da luta
pela democracia tenham se apresentado para velhas e novas gerações, contra
forças reacionárias ainda presentes, foi uma emoção e um alento.
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