sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Selvageria epistêmica. Por Hélio Schwartsman

Folha de S. Paulo

Pregação de Trump contra o paracetamol (Tylenol) não tem base fática ou científica

Questões técnicas deveriam estar mais bem protegidas do assédio de políticos

Donald Trump deu ouvidos ao lunático do Robert F. Kennedy Jr., seu secretário de Saúdee imprecou contra o paracetamol (Tylenol). Sugeriu que a droga, se tomada durante a gestação, pode causar autismo. É uma interpretação epistemologicamente selvagem e equivocada de trabalhos que não autorizam tal conclusão.

Sou fã da democracia, mas não por achar que ela leve as sociedades a boas escolhas. Ver Trump no poder e empenhado em minar consensos médicos é prova disso.

Um dos problemas da democracia é que ela muitas vezes reflete a vontade popular e não são poucas as ocasiões em que tal vontade é péssima conselheira.

Tivemos aqui no Brasil há alguns anos um caso também na área da saúde que retrata o dilema como uma pintura.

Falo da fosfoetanolamina, a pílula do câncer. Por dinâmicas obscuras da psicologia de massas, parte da população se convenceu de que essa substância era capaz de curar o câncer —o que não é— e lançou-se em campanha para que a droga fosse liberada para essa finalidade.

A Anvisa procedeu à análise técnica e negou a autorização. O Parlamento tomou as dores do povo e aprovou uma lei que colocava a pílula no mercado. E o Executivo sancionou a norma, que depois foi revogada pelo STF.

Os dois Poderes eleitos chancelaram o conto do vigário. Foram dois órgãos técnicos e não atrelados à vontade popular que imprimiram racionalidade à matéria.

Por uma combinação de fatores que incluem má comunicação, arrogância acadêmica, redes sociais e políticos aproveitadores, vêm-se multiplicando as situações de desconfiança e até confronto entre anseios populares e o saber especializado.

Devemos aprimorar o desenho de nossas instituições para assegurar que questões técnicas tenham tratamento técnico, e as políticas, político. Goste o povo ou não, precisamos de especialistas. Boa parte dos avanços da humanidade, das vacinas ao velcro, se baseiam no conhecimento científico acumulado coletivamente ao longo de gerações. Isso não deveria ficar à mercê de Trumps, Kennedys et caterva.

 

Nenhum comentário: