Valor Econômico
O que era antes um sentimento de descrédito e
impotência se tornou um vendaval de revolta. A pressão institucional e social
cresceu e vai continuar nessa toada
A Câmara Federal passou por um processo de
dez anos de grande fortalecimento e entra, agora, numa crise sem paralelo
recente. Não é possível antecipar se haverá uma verdadeira mudança no padrão
vigente de atuação da maioria dos deputados, norteados pela autoproteção e
ampliação dos seus próprios direitos.
Mas o casamento do bolsonarismo com a maior
parte do Centrão, e por tabela da agenda da PEC da Blindagem com a proposta de
anistia dos golpistas, causou uma rachadura enorme no modelo criado por Eduardo
Cunha e aperfeiçoado especialmente por Arthur Lira. A pressão pela reinvenção
da Casa vai crescer e tende a se tornar ainda mais forte nas eleições de 2026.
Há alguns meses, não muitos, o diagnóstico hegemônico era de que os deputados federais tinham criado um modelo perfeito para sua reprodução política e eleitoral. Desde Eduardo Cunha, tinham fortalecido seu poderio, seguindo um modelo a partir do qual a Câmara tornava-se mais autônoma em relação ao Executivo e menos propensa a prestar contas à sociedade. Uma bolha de poder e recursos protegia essa Casa legislativa, e as capacidades de reeleição e de influência sobre a política local cresceram exponencialmente.
Homenageando seu idealizador, tal paradigma
pode ser chamado de modelo Cunha, no qual três dimensões se desenvolveram nos
últimos anos. A primeira diz respeito ao aumento do poder institucional da
Câmara em relação ao Executivo. Esse processo tem precedentes, como as mudanças
na tramitação das medidas provisórias e na alteração da legislação sobre vetos,
mas sua principal característica foi impulsionada pelo poder de multiplicar o
tamanho das emendas parlamentares, uma boa parte delas com pouquíssima
transparência e controle.
Com caminhões de dinheiro para distribuir
para suas bases locais, inclusive por meio de transferências facilitadas e
“heterodoxas”, os deputados federais tornaram-se menos dependentes do Poder
Executivo. A distribuição de cargos no governo que permitia a montagem de uma
coalizão governativa perdeu força na Câmara Federal, o que tem dificultado a
vida dos presidentes de Dilma II para cá. O grande impacto que suas emendas
tiveram nas eleições de 2022 e no pleito municipal de 2024 gerou um sentimento
de onipotência política nos parlamentares.
As emendas podem muito, mas não podem tudo.
Essa ressalva é importante porque há outros fatores que talvez estejam sendo
negligenciados pelo grupo parlamentar hegemônico. Por exemplo, a montagem de
políticas públicas com escala e capacidade de melhorar a vida dos eleitores
continua sendo uma forte arma do presidente da República para ganhar
popularidade e afetar sua própria reeleição.
Como Temer e Bolsonaro não conseguiram ter
programas com boa eficácia eleitoral, muitos parlamentares pensam que emendas
definem todo o jogo político - e em 2026 terão de dizer sua posição em relação
às políticas públicas mais bem-sucedidas e aos projetos rejeitados pelo povo.
Na mesma linha da limitação do poder
emendista, valores, posições ideológicas e temas do momento influenciam parte
relevante do eleitorado. Ser antissistema foi central para eleger a enorme
bancada do PL, como ser contra o bolsonarismo foi essencial para o crescimento
da bancada petista, do mesmo modo que se colar a agendas impopulares pode
significar a perda de votos - e a concordância com a PEC da Blindagem pode ser
um selo tóxico rechaçado pelos eleitores.
De todo modo, o crescimento do poder
institucional do Legislativo no sistema político, particularmente pela via do
emendismo, foi a primeira dimensão que gerou uma postura mais ensimesmada dos
deputados federais. O poder das emendas, aliás, ampliou a influência dos
deputados federais sobre a política local, não apenas por conta do montante
enorme de recursos, mas em razão de sua opacidade, que torna os prefeitos
reféns desse esquema.
Um segundo elemento desse modelo está na
elevação extraordinária dos Fundos Partidário e Eleitoral. Tal mudança derivou
da limitação da maior parte do financiamento privado, feita por decisão do STF,
após crises sucessivas de corrupção, tendo como cume o escândalo da Petrobras.
O problema é que para corrigir uma grande distorção produziu-se uma ainda
maior. O casamento entre emendismo e recursos públicos gigantescos para quem já
está no sistema oligarquizou demais a representação política, sobretudo na
eleição proporcional que organiza a distribuição das cadeiras legislativas
federais. Em eleições majoritárias, como as do Senado, governadorias e
Presidência da República, há mais competição em torno de valores, projetos e grupos
políticos ou lideranças personalistas.
A Câmara Federal ganhou tantos recursos à
disposição que começou a perder o contato necessário com a população e suas
agruras. Houve o crescimento de agendas cada vez mais relacionadas a interesses
particulares dos deputados ou de pequenas bolhas que os apoiam. Geralmente,
quem quebra essa lógica ou é o Poder Executivo, que precisa conversar com
parcelas mais amplas do eleitorado e gerir questões coletivas complexas, ou
algum escândalo social de grande repercussão que estoura a dura casca
institucional que tem protegido a Câmara do controle social.
Fechando o modelo Cunha como terceira
dimensão, a governança da Câmara Federal tem um lugar decisivo. As últimas
gestões tornaram-se muito centralizadoras e reduziram o peso tanto dos ritos
internos como da participação da sociedade na discussão da pauta e no controle
dos parlamentares. Assim, votações na calada da noite, por meio de uma
blitzkrieg legislativa, tornaram-se comuns em temas estratégicos. O regimento
da Casa, aliás, tem sido rasgado ou interpretado de forma bastante flexível ao
gosto do presidente de ocasião.
Pior é o fato de que esse padrão decisório ao
estilo Eduardo Cunha reduziu o contato da sociedade com a Câmara Federal. O
paradigma Ulysses Guimarães era o da abertura da pluralidade social para a casa
legislativa do povo, como aconteceu na maravilhosa experiência democrática da
Constituinte. Mesmo que com menor intensidade, essa forma predominou por um bom
tempo. Foi contra isso que uma elite parlamentar com forte pendor oligárquico
se rebelou, não só fortalecendo a Câmara como instituição mais autônoma dentro
do sistema político, como principalmente a blindando de maior escrutínio
público.
O que vimos na semana passada na absurda
votação da PEC da Blindagem - ou da Bandidagem, como já reconhecida pela
população - foi o auge do modelo Cunha, que de tão exacerbado gerou uma crise
profunda. O que estava se propondo era a criação de uma casta que seria
protegida de qualquer tipo de ilegalidade, seja homicídio, pedofilia ou crime
organizado.
Uma onda de indignação em larguíssima escala
instalou-se nas redes sociais e nas ruas do país. O seu casamento com a agenda
da anistia de golpistas, que se desgasta quanto mais a população percebe que o
objetivo desse perdão é usar os bagrinhos apenas para salvar a família
Bolsonaro, esquentou ainda mais o caldeirão de fúria contra os deputados
federais. O bolsonarismo, com esse erro estratégico, perdeu a aura de
antissistema que era sua mola mestra.
O que era antes um sentimento de descrédito e
impotência se tornou um vendaval de revolta, cuja figura mais emblemática são
as fotos e os nomes de todos os deputados que votaram a favor da PEC da
Blindagem. Tal percepção, na verdade, vem de uma bola de neve, resultado de um
acúmulo de atos antidemocráticos e antirrepublicanos dessa legislatura: o motim
da oposição, com sua imagem violenta e vergonhosa do Legislativo para os
cidadãos que têm de seguir leis; a proteção de Eduardo Bolsonaro, um traidor da
pátria que causa efeitos econômicos perversos para empresas e trabalhadores em
sua ação contrária à nação; a suspeita de que, depois de Chiquinho Brazão, há
outros parlamentares ou presidentes de partido ligados ao crime organizado,
entre outros fatos vexaminosos.
O modo oligárquico não vai simplesmente
acabar, contudo, seu modo Eduardo Cunha, descolado em demasia do controle
social, vai ser colocado em xeque. A pressão institucional e social cresceu e
vai continuar nesta toada. O Senado, o STF e o Executivo Federal vão procurar se
diferenciar da Câmara, realçando seus defeitos. Isso enfraquecerá o seu grupo
dominante e colocará em questão a aliança entre parcela do Centrão e o
bolsonarismo, vistos agora como farinhas do mesmo saco.
Mais importante, a reinvenção da Câmara, para
que ela se torne efetivamente a Casa do Povo, pode se tornar um dos grandes
temas das eleições de 2026. Nem todos os parlamentares serão afetados, mas uma
parte considerável poderá não voltar em 2027 porque o excesso de poder está os
afastando dos eleitores, como estão mostrando as redes sociais e as ruas, que
não esquecerão a infame PEC da Blindagem. O discurso antissistema vai crescer,
mas o bolsonarismo perderá muito de seu apoio nesse grupo.
Neste cenário, a questão que as lideranças sociais deveriam pensar é como renovar a representação parlamentar fortalecendo a democracia. Esse foi o tema que inspirou os que construíram a redemocratização e deveria urgentemente ser retomado.
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