quinta-feira, 15 de outubro de 2020

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

Ignorância como ativo eleitoral – Opinião | O Estado de S. Paulo

Na ânsia de criticar as medidas de combate à pandemia, bolsonaristas escancaram seu darwinismo social, o que deveria custar votos

Não é somente a corrupção que degrada a política, como querem fazer crer os oportunistas que se travestiram de cruzados anticorrupção para alcançar o poder nas eleições passadas. A política também perde o sentido quando a ignorância é elevada à categoria de ativo eleitoral.

Tome-se como exemplo a declaração de Celso Russomanno, candidato à Prefeitura de São Paulo, segundo a qual “não temos uma quantidade imensa de moradores de rua com problema de covid” porque “talvez eles sejam mais resistentes que a gente porque convivem o tempo todo nas ruas, não têm como tomar banho todos os dias, et cetera e tal”.

Seria um erro tratar essa declaração grotesca como simples anedota de campanha eleitoral, como tantas que períodos estranhos como esse costumam produzir. É, ao contrário, fortemente simbólica do pesadelo que o País atravessa, entregue em parte a políticos que deliberadamente tratam os eleitores como néscios e, pasme o leitor, ainda ganham votos com isso. 

Ao classificar os pobres como uma espécie diferente, “mais resistente que a gente” porque vive nas ruas e não toma banho, o candidato Celso Russomanno nada mais fez do que imitar seu padrinho, o presidente Jair Bolsonaro – que não faz muito tempo, também a propósito da pandemia, disse que “o brasileiro tem que ser estudado” porque “ele não pega nada: você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo?, e não acontece nada com ele”.

Na ânsia de criticar as medidas de combate à pandemia, sobretudo o isolamento social, adotadas pelos governos estaduais e prefeituras, os bolsonaristas escancaram seu darwinismo social e fazem o elogio do obscurantismo, o que deveria escandalizar os cidadãos brasileiros e custar votos. Mas não é isso o que acontece: a popularidade de Bolsonaro vem subindo e o candidato Celso Russomanno está liderando as pesquisas.

Esse aparente sucesso da impostura como capital eleitoral pode sugerir que candidatos aumentarão suas chances de vitória se deliberadamente investirem em embustes grosseiros, impressão que tende a multiplicar as candidaturas sustentadas por discursos fraudulentos. Como resultado, a campanha eleitoral, que normalmente já é repleta de promessas grandiloquentes e distorções da realidade, corre o risco de ser conduzida para o terreno da farsa absoluta – em que opiniões absurdas como a do candidato Russomanno, chanceladas pelo presidente Bolsonaro, ganham mais valor que os argumentos embasados em fatos comprovados.

Isso nada tem a ver com política: é, ao contrário, sua completa negação, pois não é possível falar em política sem que haja uma realidade compartilhada por todos, a partir da qual se discutirão as soluções concretas para os problemas da comunidade. 

Quando candidatos favoritos a cargos eletivos e líderes políticos da envergadura de um presidente da República se esforçam para conduzir o debate para o terreno da mais absoluta mistificação, negando a razão e a ciência como se estas fossem prejudiciais ao País, salga-se o terreno comum da política, enquanto germina o campo do charlatanismo autoritário.

Tudo isso no momento em que a pandemia já matou mais de 150 mil brasileiros. Ou seja, não é um capricho qualquer, tampouco um tema que possa ser tratado de forma leviana na campanha: é de vida ou morte que se trata. Se um postulante à prefeitura da maior cidade da América Latina, apoiado por ninguém menos que o presidente da República, “argumenta”, sem nenhuma base na realidade, que moradores de rua devem ser imunes à covid-19 porque não tomam banho e vivem aglomerados, é o caso de levantar as mãos aos céus e agradecer pelo fato de não ser ele o prefeito neste momento.

Mas pode vir a ser, segundo indicam as pesquisas de intenção de voto. E esse desfecho eleitoral, a julgar pelo que se viu até aqui, pode ajudar a aprofundar o empreendimento bolsonarista de aniquilação da inteligência e da capacidade de julgamento, sem as quais não se administra racionalmente um governo nem, muito menos, se constrói uma democracia saudável.

A manobra e a conivência – Opinião | O Estado de S. Paulo

A tentativa de reeleição de Davi Alcolumbre trava a pauta do Congresso Nacional

Além de ser inconstitucional, a tentativa de reeleição do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), trava a pauta do Congresso, impedindo o avanço de projetos de lei relevantes para o País, como mostrou reportagem do Estado. Diante da grave crise social, econômica e fiscal, não é momento de o Legislativo inventar problemas adicionais. É hora de cumprir a Constituição e de dar andamento a tudo aquilo que possa ser estímulo ao investimento, à produtividade e ao emprego.

O texto constitucional é cristalino quanto à proibição de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. “Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1.º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de dois anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”, diz o art. 57, § 4.º da Constituição.

Tal proibição deveria extirpar pela raiz qualquer desejo de reeleição que eventualmente possa aflorar em algum ocupante da presidência da Câmara e do Senado. Não há trilha a ser percorrida fora da Constituição. No entanto, “Alcolumbre voluntariou-se para reeleger-se. Uma decisão pessoal, cuja razão real ainda não emergiu. (...) O presidente do Senado assumiu tal obstinação e paralisou as atividades da Casa”, escreveu Rosângela Bittar no Estado (Balé de sombras, 14/10).

Para angariar apoio à reeleição, David Alcolumbre tem segurado a votação de projetos que não tenham consenso entre os senadores. Com isso, projetos de lei já aprovados pela Câmara, como o novo marco legal do mercado de gás e as novas regras para recuperação judicial, estão parados no Senado. Também não há previsão para votar textos que modernizam regras dos setores ferroviário e elétrico, cuja tramitação se iniciou no Senado. Os quatro projetos estavam na lista de prioridades enviada em março ao Congresso pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Só com o novo marco do gás, o governo esperava destravar investimentos de até R$ 43 bilhões.

A situação atual da pauta do Senado é mais um elemento a confirmar o acerto da proibição da reeleição da presidência da Câmara e do Senado. De alguma forma, tal vedação vem proteger o andamento dos trabalhos legislativos de eventuais interesses eleitorais do presidente da Casa. Para que o cargo não seja usado para obter a reeleição, o constituinte fez o óbvio: proibiu a reeleição. 

A insistência do presidente do Senado em sua reeleição é, assim, um grande equívoco. Nesse intento, Alcolumbre busca envolver até o Judiciário, na expectativa de obter uma decisão judicial que, contrariando a Constituição, autorize a possibilidade de permanecer no cargo. Mas, no atual quadro, outras duas grandes omissões chamam a atenção.

Em primeiro lugar está a tolerância do Palácio do Planalto em relação à tentativa de Alcolumbre. As manobras do presidente do Senado atrapalham e atrasam diretamente os projetos que em tese são prioritários para o governo federal, mas não se vê o presidente Jair Bolsonaro atuando para pôr fim a tal situação. Ao contrário, Alcolumbre tem contado com uma tácita aprovação do Palácio do Planalto, mais interessado em acomodar interesses do que em promover reformas.

Além disso, também chama a atenção a falta de oposição efetiva por parte dos senadores aos planos de Alcolumbre. Mesmo os parlamentares que afirmam defender a Constituição e o Estado Democrático de Direito portam-se estranhamente coniventes com a manobra do presidente do Senado para se manter na cadeira por mais dois anos. “O silêncio do Senado conta com a conivência da oposição, dos ex-governadores, dos estreantes, dos antigos e de todos”, escreveu Rosângela Bittar em sua coluna.

Não deixa de ser constrangedora a insistência de Alcolumbre em sua reeleição contra a Constituição. Mas ainda mais constrangedora é a conivência do Palácio do Planalto e de grande parte dos senadores. Nessa acomodação de interesses, quem perde é o País. Sem reformas, sem crescimento e sem emprego, ainda tem de ver a Constituição ser posta de lado.

Coragem e responsabilidade – Opinião | O Estado de S. Paulo

SP tem feito as lições de casa e planejado suas finanças para os desafios pós-pandemia

A Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) demonstrou ter a compreensão do risco que se avizinha para as finanças públicas do Estado no ano que vem ao aprovar, por 48 votos a 37, o texto-base do plano de ajuste fiscal proposto pelo governador João Doria (PSDB) em agosto. Os destaques deverão ser votados em sessão ainda a ser marcada. No Twitter, Doria celebrou a aprovação do projeto, afirmando que os deputados “honraram seus mandatos e garantiram a saúde fiscal do Estado para assegurar o atendimento aos mais pobres e desvalidos em São Paulo”.

Após semanas de obstrução por parte de deputados da oposição, a base do governo na Alesp, enfim, conseguiu reunir o quórum necessário para a votação do Projeto de Lei (PL) 529/2020, texto absolutamente vital para assegurar a higidez econômica de São Paulo em um cenário de queda da arrecadação e aumento das despesas decorrentes da pandemia de covid-19.

Passada a fase mais aguda da pandemia, não serão poucas as demandas sobre o Estado para mitigar no futuro próximo os efeitos da emergência sanitária no bem-estar dos paulistas, aqui incluída a retomada de um ambiente favorável aos negócios em São Paulo. Ser fiscalmente responsável é condição necessária para a atração de empresas que geram emprego e renda.

Dois fatores foram fundamentais para que o projeto de lei fosse aprovado na sessão que entrou pela madrugada de quarta-feira passada. O primeiro foi a divisão na bancada do PTB, composta por três deputados que, sistematicamente, vinham deixando de apreciar o PL 529/2020. Um deles, o deputado Roque Barbiere, comprometeu-se a comparecer à sessão e votar o projeto, provocando a ira do líder da bancada, o deputado Campos Machado. “Hoje eu acordei e pensei comigo mesmo: o que é que quer dizer traição?”, disse Machado da tribuna. As bancadas do PSL e do PSB também ficaram divididas, com parte dos deputados favorável ao projeto, parte contrária.

Menos apaixonada e mais afeita à atividade política típica de uma Casa Legislativa foi a reação do relator especial do projeto, o deputado Alex de Madureira (PSD), à articulação que levou à aprovação do PL 529/2020 após as manobras de obstrução da oposição. “Chegamos a um ponto em que conseguimos explicar (o PL 529/2020) para mais alguns deputados que, eu acho, entenderam os pontos principais do projeto”, disse o parlamentar.

Outro fator que foi crucial para a vitória do governo na votação do plano de ajuste fiscal foi a disposição do Palácio dos Bandeirantes de rever alguns pontos do projeto que, de fato, precisavam de ajustes ou até mesmo deveriam ser descartados pelo Executivo. Foi o caso, por exemplo, do controvertido repasse do saldo superavitário das universidades estaduais e da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp) em 2019 ao Tesouro estadual. O governador João Doria recuou e retirou do projeto tanto este dispositivo como a previsão de um corte de cerca de R$ 1 bilhão dos orçamentos da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Estadual Paulista (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Fapesp.

O projeto de ajuste fiscal do governo do Estado prevê a extinção de empresas estatais, revisão de isenções tributárias e um plano de demissão voluntária que poderá abarcar 5 mil servidores públicos, entre outras medidas. Nos cálculos iniciais do governo, a aprovação do pacote de medidas em sua versão original geraria uma economia de, aproximadamente, R$ 9 bilhões. Evidentemente, após as negociações travadas com a Alesp este montante será reduzido. Mas ainda assim é esperada uma economia substantiva para os cofres do Estado.

São Paulo é um dos poucos Estados que, nesta hora grave, têm feito as lições de casa e planejado suas finanças para os desafios do momento pós-pandemia. Não surpreenderá se, pouco mais adiante, os entes que não tiveram a mesma coragem venham, de novo, bater à porta da União pedindo socorro.

A hora da 2ª instância – Opinião | Folha de S. Paulo

Trapalhada com traficante ao menos reacendeu debate sobre cumprimento de penas

A barafunda em torno da desastrada soltura de um líder de quadrilha pelo ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, teve ao menos o mérito de iluminar algumas das principais disfuncionalidades de nossa Justiça.

Salta à vista, em especial, que um perigoso traficante já condenado duas vezes em segunda instância a penas que somam mais de 25 anos de reclusão —nesta semana, a terceira, o Superior Tribunal de Justiça, confirmou o acórdão em um dos processos— encontrava-se preso devido a uma cautelar.

Estivesse o réu cumprindo sua pena, em vez de retido por prisão preventiva, não teria sido tão fácil ter sido libertado e evadir-se.

O remédio para essa situação é conhecido e defendido por esta Folha —encontrar uma forma de restaurar a prisão após a decisão da segunda instância. Há várias possibilidades no tabuleiro.

A maioria dos integrantes do STF poderia, mais uma vez, mudar de ideia e alterar a jurisprudência. O vaivém da corte, porém, não constitui a melhor resposta ao problema.

O ideal seria que o Congresso Nacional se pronunciasse sobre a matéria. Entre as alternativas está aprovar uma emenda que altere o artigo 5º da Constituição, mas a medida é polêmica: alguns juristas entendem que o texto, por tratar de garantias individuais, estaria blindado contra mudanças.

Outro caminho é a chamada emenda Cezar Peluso (ex-ministro do STF), que deixa intacto o artigo 5º e modifica o sistema recursal. Com isso, o trânsito em julgado se daria após a segunda instância; o acesso a cortes superiores seguiria como hoje, mas não contaria como continuação do processo.

De toda maneira, o cumprimento da pena após a segunda instância colocaria o Brasil em linha com a prática da esmagadora maioria das democracias ocidentais —e teria o efeito adicional de reduzir a proporção de presos provisórios no país, que anda em torno dos 40%.

Este último aspecto levou o Congresso a aprovar, no ano passado, uma norma que obriga as autoridades a renovarem, a cada 90 dias, a fundamentação da prisão provisória. Foi esse o dispositivo usado por Marco Aurélio para soltar o traficante André do Rap.

O objetivo da regra é dos mais nobres. Detentos pobres e sem acesso a bons advogados são frequentemente esquecidos por anos no sistema carcerário, sem julgamento. No episódio recente, faltou bom senso em sua aplicação.

Não por acaso, o Supremo já formou nesta quarta-feira (14) maioria para manter a prisão preventiva do criminoso, agora foragido.

Outro vício escancarado na novela é que os ministros da corte funcionam como 11 ilhas, que não hesitam em usar seus amplos poderes mesmo contra o entendimento do colegiado. Essa questão, por envolver prerrogativas e vaidades, é bem mais difícil de resolver.

Mudança no trânsito – Opinião | Folha de S. Paulo

Melhorado, texto que abranda normas combina medidas corretas e questionáveis

O presidente Jair Bolsonaro sancionou com vetos, na terça (13), o texto final do projeto que apresentou em 2019 para mudar o Código de Trânsito Brasileiro. Felizmente, o Congresso conteve o ímpeto inicial do mandatário, que dava vazão ao seu populismo rodoviário, e melhorou em muito a proposta.

O abandono de propostas irresponsáveis, como a abolição de multa para quem conduzisse crianças sem o uso de cadeiras apropriadas, e outras sugestões do Legislativo levaram a um resultado mais equilibrado, até mesmo com vantagens em relação às normas vigentes.

É o caso do aumento do prazo para renovar a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) de pessoas com idade inferior a 50 anos, que passa de cinco para dez anos. O projeto do Executivo estabelecia limite de 65 anos de idade.

O aumento do limite de pontos para perda da habilitação, de 20 para 40, quando não há registro de infração gravíssima, pode ser considerado condescendente, mas tende a contornar a indústria de recursos e subterfúgios que prosperou à sombra do atual sistema.

Preocupante se mostra a extensão indiscriminada do limite de 40 pontos para taxistas, motoristas de aplicativos e caminhoneiros, tenham ou não cometido infração gravíssima —ainda que se prevejam cursos de reciclagem para quem atingir 30 pontos.

Menos rigoroso, mas não necessariamente menos eficaz, o uso da advertência em lugar da multa, quando o motorista não reincidir na infração em 12 meses, merece exame cuidadoso de seus resultados nos próximos meses.

Diante da realidade do uso da bicicleta nas cidades, o texto acerta ao prever como infração grave o estacionamento sobre ciclovias ou ciclofaixas, bem como ao classificar como gravíssimo não reduzir a velocidade ao ultrapassar ciclistas.

Em tema complexo, Bolsonaro vetou a alteração da regra que autoriza o tráfego de motocicletas entre automóveis. Disciplinar o trânsito de motos, veículos que lideram os acidentes fatais nas vias públicas, é um desafio nacional, dada a quantidade de empregos e serviços que dependem da norma.

O assunto não se presta a tiradas frívolas como a de Bolsonaro ao justificar o veto— alegando que dessa forma a pizza levada pelo entregador chegará quente.

Até que enfim, a privatização dos Correios - Opinião | O Globo

Começa a sair do papel a promessa de venda das estatais feita na campanha eleitoral de 2018

Chegou enfim ontem à Presidência o projeto de lei que marca o início da privatização dos Correios e a retomada do ambicioso plano de venda de estatais prometido na campanha eleitoral pelo ministro Paulo Guedes. Demorou quase dois anos para a promessa começar a sair do papel, mesmo assim trata-se de notícia excelente. Depois dos Correios, a fila da privatização inclui desemperrar a venda da Eletrobras, leiloar o Porto de Santos e a estatal do pré-sal.

O projeto para os Correios, elaborado pelo Ministério da Economia, pretende criar um mercado competitivo para a entrega de mercadorias e correspondências. Para isso, regulamenta o artigo da Constituição que trata dos serviços postais e cria uma nova agência reguladora, a Agência Nacional de Comunicações (Anacom). Ela assumiria os poderes da Anatel e teria a incumbência adicional de cuidar desse novo mercado de entregas, sujeito à concorrência privada.

A principal dificuldade na privatização de uma estatal como os Correios é garantir as entregas nas regiões mais remotas e menos lucrativas. Ainda não há consenso sobre o modelo a adotar para conseguir isso. Uma dúvida é se a estatal deve ser vendida inteira ou fatiada. Os defensores da divisão se inspiram na privatização bem-sucedida da telefonia, quando a Telebras foi quebrada em pedaços, e as áreas nobres e mais rentáveis para o negócio foram associadas à obrigação de universalizar o serviço em regiões desassistidas.

Tal modelo desperta críticas entre os defensores da venda da estatal inteira. De acordo com o economista Sérgio Lazzarini, do Insper, o negócio em pedaços seria pouco atraente ao capital privado. Como alternativa para levar entregas às áreas remotas, Lazzarini acredita que será preciso oferecer incentivos financeiros ou subsídios aos vencedores do leilão. O BNDES contratou uma consultoria que deverá debater o tema com congressistas e apresentar um plano em 120 dias.

Independentemente do modelo que vier a ser adotado, a telefonia traz outras lições relevantes. Enquanto os editais dos leilões das filhotes da Telebras exigiam a instalação de orelhões nos rincões do Brasil, poucos eram então capazes de vislumbrar que a universalização viria por meio da internet acoplada à telefonia celular. Da mesma forma, tecnologias de entrega hoje ainda incipientes, como drones ou caminhões autônomos, têm tudo para trazer ao setor de entregas um dinamismo ainda difícil de imaginar. Daí a importância de abrir o setor à competição. O setor privado sempre anda mais rápido que o Estado na hora de inovar para prestar um serviço melhor.

O ministro das Comunicações, Fábio Faria, foi enfático ao assegurar que, depois da privatização, ninguém deixará de receber cartas ou encomendas em qualquer lugar do país. A Constituição exige que o Estado garanta a existência de um serviço de entregas universal. Também devem ser garantidos padrões de agilidade e o respeito à privacidade dos itens transportados. Quem são os acionistas das empresas que prestarem o serviço é irrelevante.

O uso temerário de retardante no combate ao fogo no Centro-Oeste - Opinião | O Globo

Relatórios do próprio Ibama alertaram para o risco da aplicação do produto químico

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, aproveita a fumaça que ofusca a paisagem do Norte e do Centro-Oeste do país para pôr em prática, sem qualquer discussão com a sociedade, o uso temerário de retardantes no combate às queimadas. Adicionado à água lançada pelas aeronaves, o produto químico, que permite extinguir as chamas de forma mais rápida, foi aplicado na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, onde Salles esteve no último fim de semana.

Há dúvidas sobre o efeito do produto no meio ambiente. E elas vêm do próprio Ibama. Como mostrou o “Jornal Nacional”, um relatório do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios (Prevfogo) alertava em julho que, depois do uso do retardante, é preciso suspender o consumo de água, frutas e legumes por quarenta dias na região atingida, e ela deve ser monitorada por seis meses.

Em agosto, outro relatório do Prevfogo pôs em dúvida o uso de retardantes em áreas como Pantanal, Xingu ou Araguaia, onde há água em abundância. Afirmou ainda não ser possível definir o limite seguro para que o produto não cause mais danos que o fogo. Como já virou praxe no governo, Gabriel Zacharias, responsável pelos relatórios, foi exonerado.

E passou mais uma “boiada”.

Embora o Ministério do Meio Ambiente tenha alegado que o produto não é tóxico e que não há restrição na legislação, o uso do retardante na Chapada dos Veadeiros foi criticado pela Secretaria de Meio Ambiente de Goiás, que disse não ter sido consultada, e por moradores da região, que pediram a saída de Salles. Em resposta aos protestos, o ministério divulgou nota afirmando que “a opinião de meia dúzia de maconheiros não era relevante”. A pasta argumentou ainda que a Chapada está sob jurisdição federal. Não significa que Salles possa fazer o que quiser no parque.

A afobação para usar um produto químico controverso contrasta com a leniência do ministério na contratação de brigadistas para combater os incêndios na Amazônia e no Pantanal. Devido a questões burocráticas e mudanças na legislação, o governo levou quatro meses para pôr os agentes em campo — só fez isso em agosto —, mesmo sabendo desde o início do ano que o Centro-Oeste enfrentaria altas temperaturas e uma estiagem severa, condições que contribuíram para agravar os incêndios.

Não surpreende que Amazônia e Pantanal venham registrando recordes sucessivos de focos de incêndio este ano, segundo o Inpe — embora o governo não queira ver. A perda de fauna e flora é imensurável. Negacionismo, inépcia, arrogância e administração errática resultam no ambiente inflamável.

FMI adverte sobre a retirada prematura de estímulos fiscais – Opinião | Valor Econômico

A capacidade do governo de realizar investimentos racionais, neste ambiente, é limitada

Os enormes e generalizados aumentos da dívida pública para combater os efeitos da pandemia preocupam menos o Fundo Monetário Internacional do que a possibilidade de que os países “desliguem o apoio fiscal muito cedo”. Manter os estímulos fiscais para consolidar a retomada é uma recomendação, inequívoca no caso das economias avançadas e com facilidade para contrair novos empréstimos. Ela é condicional, porém, em relação a economias emergentes, muitas das quais já não tinham espaços fiscais para políticas anticíclicas antes da covid-19 e ampliaram dívidas já muito elevadas. No caso do Brasil, o caminho a seguir é complexo. O Monitor Fiscal mostra que o país ampliou os gastos públicos tanto quanto os países ricos, tem o maior endividamento do mundo emergente e capacidade de financiamento adicional limitada - e sob desconfiança.

Os países avançados precisam, além de evitar retirar o apoio fiscal prematuramente - o FMI julga que o correto é mantê-los pelo menos até 2021 -, elevar os investimentos públicos, cujo poder de irradiação cresce em meio a incertezas, como as atuais. “No momento, o importante é sustentar a recuperação e reduzir danos prolongados às economias”, disse Vitor Gaspar, diretor de Assuntos Fiscais do FMI.

A dívida dos países ricos subiu a 125,5% do PIB - a global, a 100% pela primeira vez -, com alta de 20,8 pontos percentuais em relação a 2019. A dos países emergentes aumentou 5,9 pontos percentuais, para 62,2% do PIB. O endividamento dos países do G-20 já era exorbitante antes mesmo da pandemia: 240% do PIB. Mas há dois motivos para que o Fundo não se alarme com a evolução da dívida dos países ricos. A covid-19 foi um “evento único” para as dívidas e as taxas de juros próximas ou abaixo de zero permitirão a estabilização do endividamento já a partir de 2021 - exceto nos EUA e na China.

Os dilemas mais difíceis na saída da pandemia estão na direção da política fiscal que seguirão países cuja dívida é muito alta e têm em xeque sua capacidade de continuarem se endividando. O Brasil é o exemplo extremo deste grupo, um caso quase único entre os emergentes. Seus gastos contra os efeitos da pandemia chegaram perto de 11% do PIB, bem acima dos 5% do PIB dispendidos pelos emergentes. O déficit fiscal elevou-se para 16,8% do PIB, acima da média de -14,4% dos países ricos e só abaixo de EUA e Canadá.

A dívida bruta do governo geral brasileiro alcançará 101,4% do PIB em 2020, segundo o FMI. A média dos emergentes é de 62% do PIB e quem mais se aproxima do Brasil, ainda que a boa distância, é a Índia (89,3%). Pelas previsões do Fundo, não explicitadas, o déficit fiscal em 2025 estará no mesmo nível (alto) de 2019, em 5,9% do PIB, um dos piores resultados projetados de todos os países, exceto China, Índia e alguns produtores de petróleo. Já a dívida bruta cresce ao longo de todo o período, atingindo 104,4% do PIB ao fim do quinquênio. Só os países ricos superam esta marca.

O FMI sugere que países com restrição fiscal priorizem a proteção aos mais vulneráveis e cortem gastos que redundam em desperdícios. Um planejamento fiscal de médio e longo prazo é uma peça importante na transição. Perguntado, Vitor Gaspar disse que o teto de gastos tem “importante papel a desempenhar”, junto com as reformas. Outro capítulo do Monitor Fiscal, sobre investimento público, foi mais explícito ao admitir a suspensão temporária de regras fiscais que impedem gastos, desde que elas sejam substituídas por outras críveis, de consolidação, anunciadas com clareza e em detalhes.

Há vários meios de arrumar recursos para gastos que sustentem redes de proteção social. Redução de salários de funcionários públicos, para o FMI, é um deles. Outro é aumentar impostos sobre os mais ricos, seja para elevar os recursos de programas focados nos mais vulneráveis, seja para reduzir o déficit. Uma outra é taxar progressivamente salários e rendas para financiar investimentos na infraestrutura e na reorientação da economia para atividades que criem empregos, elevem a produtividade e sejam ambientalmente sustentáveis. O sistema tributário deve ser reformado para apoiar estes objetivos.

Endividado, o Brasil precisa retomar o ajuste, sem descuidar de manter algum apoio fiscal. A maré política, que conduz o barco da reeleição de Bolsonaro, empurra mais na direção do fim das amarras fiscais e da gastança. A capacidade do governo de realizar investimentos racionais, neste ambiente, é limitada. Achar o meio termo é possível, embora pouco provável.

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