DEU EM GRAMSCI E O BRASIL
1. Introdução
Os conceitos de hegemonia e imperialismo são usados por autores representantes dos três principais paradigmas das Relações Internacionais (realismo, institucionalismo e marxismo) de formas diferentes, muitas vezes para explicar o mesmo: o estabelecimento de uma determinada ordem internacional sob dominação de uma potência. Algumas vezes “dominação”, “império” e “hegemonia” são usados de maneira intercalada, sem diferenciação; em outras, os mecanismos e meios com os quais a ordem dominante é estabelecida e mantida se distinguem, diferenciando uma ordem hegemônica de uma imperial. Alguns autores enfatizam os elementos do “consenso” na construção e manutenção da ordem, outros colocam à frente as diferentes formas de “coerção”. Ambas as caracterizações da ordem mundial podem ser tratadas de forma positiva (como uma liderança benévola) ou negativa (uma imposição de poder e subordinação de uns frente a outros), dependendo das visões de mundo e do posicionamento de cada autor.
O presente trabalho se propõe revisar parte da literatura existente sobre os conceitos de hegemonia e imperialismo por autores ligados a diferentes correntes de pensamento das RI, a fim de esclarecer como e quando cada um destes conceitos é usado. Primeiramente será averiguada algumas de usas definições, para depois analisar seus usos para caracterizar o período de dominação dos EUA após a segunda guerra mundial. Este breve ensaio não esgota a vasta literatura existente sobre estes conceitos, tampouco poderá fazer um estudo de caso detalhado. Propõe-se, no entanto, explicar as diferentes caracterizações e os elementos enfatizados em cada uma delas, procurando esclarecer parte do campo teórico do estudo da ordem mundial.
2. Imperialismo: definições e usos
O uso do termo “imperialismo” foi, por um longo tempo, restrito ao campo marxista. Mesmo as diversas intervenções militares estadunidenses durante a guerra fria não suscitaram o uso do termo pelas principais correntes de pensamento nas RI, uma vez que a situação da guerra fria justificava as estratégias geopolíticas. Segundo Borón (2006) e Foster (2006), o conceito de imperialismo reaparece de maneira inesperada a partir de seu “centro”, os EUA, com a “guerra ao terrorismo”. Os termos “império” e “imperialismo” econômico, militar ou cultural são retomados na mídia e na academia norte-americana e mundial, mas vistos como separados, dissociados do capitalismo, podendo ter inclusive uma conotação benévola (Foster 2006: 432-439; Borón 2006: 461).
Durante os anos 70, um dos poucos autores não-marxistas a trabalhar o tema do imperialismo foi Cohen (1976). O autor aponta que o termo ficou relegado a “panfletos políticos”, sendo necessário um método apropriado para redefini-lo, dando-lhe um significado “bem definido, eticamente neutro e objetivo” para que seja útil à análise da Economia Política Internacional (Cohen 1976: 15). Desde este ponto de partida, o autor define imperialismo como “tipo de relações internacionais caracterizadas por uma assimetria particular — a assimetria de dominação e dependência. [...] O imperialismo refere-se àquelas relações particulares entre nações inerentemente desiguais que envolvem subjugação efetiva, o exercício real da influência sobre o comportamento” (ib.: 20, grifos no original). O conceito seria operacional. A forma do imperialismo pode ser o controle direto, através da extensão da soberania política, ou indireto, com penetração econômica e pressões diplomáticas ou militares.
O autor baseia-se no realismo para afirmar que a política de poder é determinante da ordem internacional, e a raiz principal do imperialismo está na “organização anárquica” do sistema internacional. A anarquia vai disciplinar o comportamento dos Estados, levando-os à busca da maximização de sua posição de poder individual a fim de assegurar sua segurança nacional. Desta forma, o imperialismo teria sua origem “na organização externa dos Estados” (ib.: 223).
A visão de Cohen reflete o paradigma realista do sistema internacional. A expansão de poder (territorial, econômica, política e militar) dos Estados é justificada para manutenção de seus status quo, o que apresenta uma ambiguidade, uma vez que é necessário expandir e crescer para manter a situação original de poder. A política de expansão do Estado imperial se torna uma “escolha racional”, perdendo elementos morais e éticos. O poder adquire conotação neutra, e a política de poder e expansão se torna um movimento quase mecânico. As consequências da guerra, racismo, exploração e subalternização de outras nações, povos e classes, acabam sendo silenciadas. Observamos aqui a dissociação entre capitalismo e imperialismo. Outros autores também buscaram o uso historicamente específico do conceito de imperialismo e a separação de seus aspectos econômicos e políticos (ver, p. ex., Smith 1981).
É com os pensadores marxistas que o conceito de imperialismo será definido de forma mais complexa e abrangente. A teoria marxista clássica do imperialismo é de Lenin. Para este, o imperialismo do final do século XIX é consequência direta da fase de monopólio do capitalismo nos países avançados, ou seja, a combinação, em uma só empresa, de diferentes ramos da indústria (Lenin 2005/1916: 19). Este desenvolvimento leva também a uma centralização de capital-dinheiro em alguns bancos, que passam de simples operadores e intermediários, a “monopólios onipotentes”, que dispõem do capital-dinheiro da maior parte das indústrias, conferindo-lhes nova função: a capacidade de controle da economia de toda a sociedade (ib.: 31). Ao mesmo tempo, Lenin explica que a relação entre banqueiros e industriais não está absolutamente separada, mas, ao contrário, há antes uma “união pessoal”. Se os industriais só têm acesso a seu capital através dos bancos, também estes precisam colocar este enorme capital em investimentos de retorno. Assim é formado o “capital financeiro”, o capital bancário transformado em capital industrial (Hilferding, apud ib.: 47) [1].
Com a formação do capital financeiro inicia-se o processo chave do imperialismo capitalista: exportação de capital. O excedente de capital em alguns países é exportado para nações pré-capitalistas, onde são construídas as condições para o desenvolvimento capitalistas destas áreas (como ferrovias e infraestrutura), sempre dadas em troca de algo para proveito próprio, impondo gastos do mesmo empréstimo na compra de produtos do país credor. A exportação de capitais aumenta a exportação de mercadorias e, com isso, inicia-se o alargamento e aprofundamento do capitalismo em todo o mundo (ib.: 64-5).
Qual é o papel da guerra para Lenin? Enquanto ele entendia o imperialismo moderno a partir do (sustentado pelo) capital financeiro, Kautsky (1914) enfatizou o seu lado político. Para este, a ocupação e a subjunção de áreas agrárias produziram fortes contradições entre os países industrializados, levando a uma corrida armamentista. Contraditoriamente, a própria economia capitalista estaria ameaçada por esta competição, sendo de interesse dos próprios capitalistas a união pacífica entre os grandes Estados, se estes quiserem continuar explorando as áreas agrárias. Kautsky previa uma translação da cartelização do capital para a política externa: uma fase de “ultraimperialismo”, ou uma “aliança sagrada” entre Estados imperialistas. Quanto mais durasse a guerra, mais exaustos estariam seus participantes, fazendo-os querer evitar a repetição de conflitos armados.
Em resposta a Kautsky, Lenin reafirmava a centralidade do capital financeiro nesta fase do imperialismo, que mostrava tendência de anexação não só das áreas agrárias, mas também das industriais. O capital financeiro e os trustes acentuavam (e não diminuíam) as diferenças entre os ritmos de crescimento dos diferentes países e regiões da economia mundial. Com isso, “faz parte da própria essência do imperialismo a rivalidade de várias grandes potências nas suas aspirações por hegemonia, isto é, a apoderarem-se de territórios não tanto diretamente para si, como para enfraquecer o adversário e minar a sua hegemonia” (Lenin 2005/1916: 92). Perguntava, então: “como podem resolver-se as contradições, sob o capitalismo, a não ser pela força?” (ib.: 97, grifo no original). Uma aliança pacífica entre as potências seria uma trégua entre guerras, gerando um ciclo de formas de luta pacífica e não-pacífica sobre uma mesma base de vínculos imperialistas (ib.: 121).
Autores atuais apontam para a necessidade de avançar das teorias clássicas do imperialismo, uma vez que estas já são insuficientes para explicar a atual fase do capitalismo mundial. Para Panitch/Gindin (2004), o imperialismo demonstrava ser um movimento duplo e simultâneo: o aprofundamento do capitalismo para dentro e sua expansão para fora. Os autores afirmam que a relação entre capitalismo e imperialismo somente pode ser entendida a partir de uma teoria do Estado. Quando Estados pavimentam, monitoram ou administram o caminho para a expansão de seu capital para fora, isto só pode ser entendido em termos do papel relativamente autônomo do Estado na manutenção da ordem social e na garantia das condições de acumulação do capital dentro das fronteiras (Panitch/Gindin 2004: 7). Além de compreender a predominância conjuntural de um Estado, para a atual fase do imperialismo é necessário entender a penetração estrutural em antigos rivais pelo Estado imperial, característica principal do que eles chamarão de American informal empire [2].
Para Ellen Wood (2003), a lógica das teorias do imperialismo clássico é a mudança de foco de operações internas nos países capitalistas avançados para relações externas, ou interações e conflitos entre Estados capitalistas e o mundo não-capitalista (Wood 2003: 124-8). Enquanto no imperialismo tradicional a dominação colonial e exploração econômica eram transparentes, a principal caracterização do “novo imperialismo” é a dominação não-direta, que torna as relações opacas. As formas de coerção econômicas são diferentes da política e militar: a “compulsão” é impessoal, opera como imposição do “mercado”. As relações são formalmente reconhecidas e se dão entre entidades legalmente iguais e livres, ou seja, Estados soberanos, assim como trabalhadores e patrões, credores e devedores (ib.: 1-4). Mas a coerção “extraeconômica” — política, militar, jurídica — se mantém essencial, especialmente quando ações militares dos principais países são fundamentadas pela “neutralidade dos interesses da sociedade internacional” (ib.: 5).
Portanto, para entender o “novo imperialismo”, é necessário entender a natureza da relação entre forças econômicas, políticas, militares e ideológicas no capitalismo. Este é especialmente capaz de dissociar o econômico do extraeconômico, porém, segundo Wood, o Estado-nação é mais essencial ao capital que nunca. Somente ele pode ser o garantidor administrativo e coercivo da ordem social, das relações de propriedade, da estabilidade e previsibilidade contratual, ou de qualquer outra condição básica requerida pelo capital em seu cotidiano (ib.: 139). Com isso, o novo imperialismo depende cada vez mais de um sistema de múltiplos Estados e soberanias locais, ao mesmo tempo em que, para administrar este múltiplo sistema de Estados, é necessário um único poder militar, capaz de manter todos “na linha” (ib.:142), função exercida pelos EUA.
3. Hegemonia: definições e usos
O conceito de hegemonia é usado de maneira mais abrangente do que imperialismo, tendo sido incorporado em boa medida por realistas e institucionalistas das Relações Internacionais. Império e hegemonia têm algo em comum — o exercício da liderança —, porém há divergência sobre a finalidade, forma e os instrumentos com os quais esta liderança é exercida.
Para Agnew (2005), hegemonia e império se diferem no tipo de poder e sua organização geográfica. Se o “poder rígido” está ancorado na coerção militar, e o soft power em valores culturais e preferências, a organização geográfica de poder varia entre fortemente territorial ou difusa e “enredada” (Agnew 2005: 21). A diferença de hegemonia para império estaria na falta de comprometimento explícito para com o bloco territorial de poder em si, e no seu embasamento em persuasão e recompensa aos subordinados. O autor define hegemonia como a participação de outros no exercício do seu próprio poder, “convencendo-os, bajulando ou coagindo a querer aquilo que você quer” (ib.: 2).
Certamente a base para esta diferenciação está no conceito de hegemonia de Gramsci. Sua definição foi popularizada pela equação “consenso + coerção”. As reflexões de Gramsci, no entanto, têm como ponto de partida um questionamento específico num período histórico concreto: como explicar a vitória do fascismo na Itália? A complexidade e refinamento de sua teoria advém, portanto, da perspectiva de uma derrota (os inimigos estavam no poder), e de uma reflexão sobre as táticas e estratégias do inimigo, para poder derrotá-lo.
O conceito de hegemonia de Gramsci refere-se diretamente a sua noção de Estado de forma ampliada: sociedade política e sociedade civil. A hegemonia se forma com a supremacia de determinado grupo ou classe social e sua liderança moral e intelectual na sociedade civil. Este grupo exerce liderança antes de chegar ao governo. Neste momento ele se torna dominante, mas mesmo depois de se afirmar no poder, não pode deixar de “liderar” (Gramsci 1971: 58). Para Gramsci, “dominar” não é igual a “liderar”: este requer certas concessões aos grupos subordinados, para que eles “concedam” (mesmo que indiretamente) e se tornem parte do projeto de dominação de dado grupo.
A hegemonia pressupõe, portanto, levar em consideração os interesses e tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia deve ser exercida. Isto significa que o grupo dominante terá que fazer certos sacrifícios de tipo econômico-corporativo, desde que não toquem no essencial de seu poder econômico (ib.: 161). Este “equilíbrio compromissado” faz com que o desenvolvimento e expansão do grupo particular sejam concebidos e apresentados como força-motriz de uma expansão universal. Segundo Gramsci, o Estado se torna o reflexo destes interesses particulares apresentados como universais (ib.: 182).
A hegemonia da classe dominante é, assim, institucionalizada no aparato político, mas formada e sustentada na esfera na sociedade civil (Estado ampliado). Quando a classe dominante perde o consenso na sociedade, ela não exerce liderança, mas dominação, precisando para isso exercer força coerciva (ib.: 272). A ideologia liberal buscou separar o Estado da sociedade civil, afirmando que a atividade econômica pertence a ela, e o Estado não deve intervir nem regulá-la. Mas se ambos são parte do mesmo, então, segundo Gramsci, “deve estar claro que o liberalismo também é uma forma de regulação estatal, introduzida por meios legislativos coercivos” (ib.: 160). Hegemonia e sociedade civil são, portanto, dois conceitos interdependentes e devem ser pensados de forma conjunta (Buttigieg 2005).
Alguns autores críticos e marxistas buscaram adequar o conceito gramsciano em sua complexidade para as Relações Internacionais. No entanto, na concepção predominante na academia norte-americana, o realismo, a visão de hegemonia é centrada no poder do Estado em sua forma simples: instituição de autoridade política. Um expoente do realismo, Gilpin, equivale poder, hegemonia, império e Estado dominante como sinônimos. Para ele, a história demonstra que a guerra tem sido inevitável para solucionar tensões geradas pelo desequilíbrio na distribuição de poder no sistema internacional. Hegemonia é consequência inevitável da vitória de pelo menos um Estado ou grupo (Gilpin 1981: 197-8). Segundo o autor, uma guerra hegemônica se caracteriza por: contestação direta entre poder dominante e Estados revisionistas, mudanças na natureza e a governança no sistema, e meios de violência quase ilimitados (ib.: 200). As grandes transformações na história mundial foram derivadas de guerras hegemônicas entre rivais políticos, cujo resultado é o re-ordenamento do sistema a partir de ideias e valores do Estado vencedor (ib.: 203).
Gilpin afirma que marxistas e realistas compartilham da visão de que, enquanto for possível a expansão territorial e de recursos, a lei do desenvolvimento desigual pode operar sem alterar a estabilidade do sistema como um todo. No entanto, quando seus limites são alcançados, o sistema entra em crise, o que levou a uma intensificação do conflito e ao colapso final do sistema em duas grandes guerras (ib.: 201). Observa-se que o mesmo processo histórico caracterizado por Gilpin como guerra hegemônica, para Lenin é denominado guerra inter-imperialista.
Ao contrário de Gramsci, Gilpin afirma que a tática de fazer concessões aos poderes menores para assegurar o status quo pode demonstrar um sinal de enfraquecimento do hegemon, gerando um ciclo vicioso de demandas por mais concessões (ib.: 207). Este ponto expõe a diferença da concepção de hegemonia como poder militar, política, territorial e econômico (semelhando a imperialismo), inversamente de autores que trabalham com “consenso e coerção”. Para estes, a habilidade de construção de consenso a partir de concessões legitimará a liderança do hegemon, que usará a coerção somente quando necessário. Assim, as formas de concessão e compromissos internacionais são instrumentos de legitimação do poder.
Gilpin aponta que paz se equivale a uma “estabilidade hegemônica”, uma vez que ela é assegurada e vigiada por um poder maior, que coordena a política mundial a partir da sua visão de mundo (ib.: 209). Também Kindleberger (1973) aponta que a crise e a Grande Depressão dos anos 30 poderia ter sido evitada se a Inglaterra tivesse tido capacidade, e os EUA vontade política de exercer liderança (Kindleberger 1973: 291-2). Ambos foram incapazes de preservar o “bem público”, voltando-se para si, privilegiando questões particulares ao invés do bem comum, que seria a estabilidade do sistema como um todo. As visões de Gilpin e Kindleberger deram origem à chamada “teoria da estabilidade hegemônica”, desenvolvida posteriormente por Keohane (1993), expoente do paradigma institucionalista das RI. De acordo com este, as estruturas hegemônicas de poder dominadas por um só país conduzem à formação de regimes internacionais fortes, com regras precisas e obedecidas por todos (Keohane 1993: 111) [3]. Os regimes econômicos internacionais fortes dependem de um poder hegemônico, ao passo que fragmentação do poder entre países em competição leva à fragmentação do regime. A concentração de poder indica, portanto, estabilidade.
Keohane afirma que poderes maiores e menores têm incentivos para colaborar dentro de um regime internacional: “a potência hegemônica ganha capacidade de configurar e dominar seu entorno internacional, enquanto que administra um fluxo suficiente de benefícios a pequenas e médias potências para convencê-las de que coincidem [em interesses]” (ib.: 115). Por outro lado, na medida em que a distribuição de recursos (especialmente econômicos) se torna mais equitativa, aumentam os custos do hegemon em manter estabilidade e o cumprimento das regras, e os regimes se debilitam. Inicia-se assim um período de transição e de instabilidade (ib.: 116-7).
Nota-se aqui que a hegemonia adquire uma conotação benigna. Assim como um “Leviatã” daria fim a um “estado de natureza de todos contra todos”, também o hegemon pode minimizar os efeitos da anarquia internacional. Desta forma, o “bem comum” (estabilidade, paz, ordem) seria garantido. Diferentemente de Gramsci, quem, através do conceito de hegemonia, denunciava a opressão e subalternidade de uma classe frente a outra, para estes teóricos do realismo e do institucionalismo, a desigualdade social e internacional não é um mal em si, podendo ser “um mal necessário” para garantir a ordem do sistema.
Autores críticos buscaram revidar a noção de uma hegemonia “benévola”, trabalhando, a partir da teoria gramsciana, os instrumentos de manutenção do poder na ordem mundial. Cox (1987) define hegemonia como uma dominação de forma particular, onde um Estado cria uma ordem baseada ideologicamente em ampla medida de consentimento, funcionando de acordo com princípios gerais que, de fato, asseguram a contínua supremacia do Estado líder, e sua classes social dominante, oferecendo, ao mesmo tempo, alguma medida de satisfação aos menos poderosos (Cox 1987: 7). Deste modo, para se tornar hegemônico, um Estado precisa fundar ou proteger uma ordem que seja universal em sua concepção, mas em que outros Estados sintam em parte compatível com seus próprios interesses (Cox 1993: 61).
Neste tipo de ordem, a produção em países particulares se torna conectada ao sistema mundial de produção. A classe dominante no Estado hegemon encontra aliados em classes de outros países. Uma sociedade mundial incipiente emerge no sistema interestatal, e os próprios Estados se tornam internacionalizados, de modo que seus mecanismos e políticas são ajustadas ao ritmo da ordem mundial (Cox 1987: 7). Assim, a hegemonia mundial se forma sobre uma sociedade civil globalmente concebida, e não somente a partir das relações interestatais.
Um importante mecanismo de universalização de normas da hegemonia mundial são as organizações internacionais. Através delas são incorporadas as regras que facilitam a expansão de ordens mundiais hegemônicas, legitimando ideologicamente as normas desta ordem. Ao mesmo tempo, elas mesmas são produto da hegemonia de um Estado dominante, e são capazes de facilitar a cooptação de elites dos países periféricos, e absorver ideias contra-hegemônicas (Cox 1993: 62). Para Arrighi (1993), a formação de uma hegemonia mundial está diretamente ligada à formação social hegemônica da classe dominante no âmbito doméstico. Um Estado se torna hegemônico mundialmente quando pode reivindicar com credibilidade que é a força-motriz da uma expansão universal do poder coletivo de sua classe dominante com relação a outros Estados, assim como com relação às classes subalternas (Arrighi 1993: 151). Este tipo de reivindicação é mais plausível em situações de caos sistêmico, onde há falta de organização generalizada e escalação de conflitos [4]. Na medida em que o caos sistêmico aumenta, a demanda pela instalação de ordem se generaliza entre dominantes e dominados. Qualquer Estado em condições de satisfazer esta demanda se apresenta como potencial hegemon (ib.).
4. Ordem mundial capitalista após a II Guerra: Pax Americanna ou American Empire?
Buscamos apresentar até aqui algumas das diferentes definições e aplicações dos conceitos de imperialismo e hegemonia na literatura marxista, realistas e institucionalistas das RI. Estas diferenças conduzirão à caracterização distinta do período de dominação dos EUA após a II Guerra Mundial. Para os autores realistas e institucionalistas que fazem uso do termo hegemonia, a Pax Americanna foi uma forma benévola de ordem mundial, na qual as instituições e regimes internacionais foram privilegiados para organizar a coesão contra a ameaça soviética, o que, em grande medida, significou mais custos aos EUA, se comparado a poderes hegemônicos anteriores.
Gilpin (1975) enfatiza o papel das empresas multinacionais como principal instrumento da hegemonia global americana, cujos outros pilares são a posição do dólar como moeda de troca internacional, e a supremacia militar e nuclear (Gilpin 1975: 138-40). Segundo o autor, os interesses das corporações e o interesse nacional dos EUA se sobrepõem e complementam: a expansão mundial das corporações atendem aos interesses geopolíticos americanos, sendo elas território de controle e legislação dos EUA, assim como ajudam a atenuar o déficit fiscal do dólar; ao mesmo tempo, a política externa americana apóia a expansão das empresas, com crédito, acordos comerciais, e seu peso como poder hegemônico mundial (ib.: 146-7). Com efeito, os lucros feitos pelas companhias no exterior apóiam o Estado americano a cobrir gastos pesados em operações diplomáticas e militares, tendo sido essenciais para financiar a posição hegemônica global dos EUA (ib.: 149).
Gilpin afirma que a construção de hegemonia através de alianças (especialmente com Europa e Japão) [5] demandou concessões, como por exemplo a tolerância da concorrência econômica. Instrumentos diretos de transferência de capital, como o plano Marshall, colocaram aos EUA um peso financeiro, que não ocorreu com a Inglaterra em seu período auge (ib.: 151).
Keohane (1993) aponta que a liderança hegemônica dos EUA durante a década de 1950 foi responsável, administrando benefícios a seus aliados, mas também lhes impondo restrições. Os EUA fizeram sacrifícios de curto prazo para criar uma ordem “próspera e estável” a seu favor no longo prazo. Os interesses do “mundo livre” se combinavam com os interesses dos EUA para determinar uma estratégia de liderança, facilitada em grande medida pela ameaça soviética (Keohane 1993: 315-21). No entanto, a “longa década” de 50 foi frágil e curta, uma vez que os EUA não puderam administrar bem a combinação dos interesses particulares internos com a preocupação de manter alianças internacionais. Keohane aponta que os EUA teriam contraído a “enfermidade dos fortes” — a negação em ajustar-se às mudanças —, especialmente nas áreas de finanças e petróleo, onde a política norte-americana estava debilitada pela incoerência entre demandas políticas internas e os imperativos internacionais de longo prazo (ib.: 347).
Ikenberry (2001) caracteriza a ordem mundial nos anos 90 como “hegemonia de acionistas”: uma forma benévola de poder (soft power) construída pelos EUA a partir de suas instituições domésticas democráticas, maduras, abertas, com regras previsíveis e vinculadas a uma rede de instituições multilaterais. Através destas são estabelecidas parcerias estáveis e vinculantes, que asseguram a ordem econômica e militar dominada pelos EUA, ao mesmo tempo que constrangem e restringem o poder de ação do próprio hegemon (Ikenberry 2001: 20-2). Desta forma, a ordem hegemônica construída pelos EUA seria um espelho de suas próprias instituições domésticas (ib.: 19).
Este ambiente muda com o 11 de Setembro de 2001. O termo “Império Americano” é retomado com otimismo por neoconversadores, e a administração Bush afirma uma “soberania contingente” e o direito de intervenção preventiva (Ikenberry 2004). Para o autor, porém, o termo “Império” não cabe para descrever a estrutura de dominação americana. Se, de fato, os EUA mantiveram políticas imperiais frente à América Latina e ao Oriente Médio, com relação à maior parte dos países, a ordem mundial teria sido um sistema negociado, em que os EUA buscaram a participação de outros Estados em termos mutuamente acordados. O império americano seria um “ilusão”, pois suas instituições limitam e legitimam seu próprio poder (ib.).
Contrariamente a esta argumentação, pode-se afirmar que as instituições e organizações internacionais não serviram para constranger ou limitar o poder dos EUA, senão para alcançar a universalização de normas e expandir sua hegemonia mundial (Cox 1989; 1993). Cox aponta para dois fenômenos centrais do período da Pax Americanna: a internacionalização da produção — enquanto a força de trabalho permaneceu fragmentada pelas múltiplas soberanias estatais — e a internacionalização do Estado, que passou a ajustar no plano doméstico as imposições da economia globalizada e a participar da formação do consenso internacional estruturado hierarquicamente (Cox 1989: 244-254). Arrighi (1993) aponta para a relativa reconfiguração do Estado, com considerável restrição de direitos e poderes dos Estados soberanos pelas instituições da hegemonia americana. Os princípios, normas e regras aos quais os Estados eram submetidos aumentaram e se tornaram mais estreitas (se comparadas ao período de hegemonia britânica), enquanto o crescente número de organizações supranacionais adquiriram mais poder autônomo para “sobregovernar” o sistema interestatal (Arrighi 1993: 182).
Pode-se observar que a ordem hegemônica estabelecida pelos EUA no mundo capitalista no pós-Segunda Guerra transcende o poder bélico e tem nas instituições internacionais (organizações interestatais e corporações privadas) seus pilares de legitimação e imposição da ordem. No entanto, o consenso atingido através de alianças e instituições não poderia dispensar o elemento militar, principal mecanismo de poder entre as potências da Guerra Fria. Para Magdoff (1975), o imperialismo e o militarismo são fatores determinantes da evolução e da supremacia tecnológica americana, assim como da repatriação das riquezas no interior do país. A guerra deve ser entendida em seu sentido amplo, abarcando todos os tipos de intervenção militar (Magdoff 1975: 33). As despesas militares americanas têm impacto na provisão de matérias-primas, desenvolvimento de bens duráveis e pesquisa tecnológica de alto nível, tendo impactos assim em toda a economia.
Para Panitch/Gindin, o imperialismo atual se caracteriza pela capacidade do Estado americano de penetrar e coordenar os outros Estados líderes capitalistas. O dinamismo do capitalismo americano e o seu apelo mundial, combinado com uma linguagem universalista da ideologia de democracia liberal, apoiam a capacidade do império informal de ir além dos impérios anteriores. Segundo os autores, somente o Estado americano reivindicava para si o direito de intervir contra a soberania de outros países, e somente ele reservou para si o direito “soberano” de rejeitar normas e regras internacionais, quando necessário. Neste sentido, only the American State was actively ‘imperialistic’ (Panitch/Gindin 2004: 16). Assim, a ordem capitalista mundial se organizou e regulou pela via de reconstrução de outros Estados como elementos integrais do império informal americano.
Os autores se diferenciam dos teóricos críticos baseados em Gramsci, ao afirmarem que, mesmo com toda a penetração cultural e econômica, nunca houve uma “transferência de lealdade popular direta” de outros povos aos EUA. (ib.: 32). Tampouco os EUA tiveram que incorporar demandas das classes subordinadas em outros Estados dentro da construção de seu império. O consentimento ativo para a dominação do império informal sempre foi mediado pela legitimidade que os outros Estados mantinham para si em nome de qualquer projeto particular do Estado americano (ib.). De todos modos, o recorrente uso de intervenções militares ao redor do mundo demonstram que esta legitimidade foi muitas vezes difícil de ser alcançada, e a formação de um consenso dentro das instituições hegemônicas não é suficiente.
A centralidade da força militar em combinação a força econômica dos EUA é caracterizada por Wood como surplus imperialism (Wood 2003: 143). Por que um aparato militar tão grande quando não há um inimigo claro a ser combatido? Este é o paradoxo do novo imperialismo. O poder militar não está desenhado para conquistar novos territórios nem derrotar um inimigo, não busca dominação territorial ou física, contraditoriamente produziu uma capacidade militar desproporcional com alcance global. Isso de dá, segundo a autora, precisamente por não haver inimigos nem objetivos claros e finitos: a dominação sem fronteiras de uma economia global e um múltiplo sistema de Estados para administrá-la requerem ação militar sem propósito, tempo e fim (ib.: 144). Substituem-se doutrinas tradicionais de guerra por um novo princípio de “guerra sem fim”, pelo qual ações militares são justificadas sem expectativa de seu objetivo será alcançado (ib.: 149). Diferentemente do antigo, que se baseava na expansão do capital para áreas pré-capitalistas, o novo imperialismo se baseia na própria universalidade do capitalismo. Wood ressalta que a força militar apoia seu alcance global. Enquanto os imperativos de mercado têm um alcance que vão além do poder de um único Estado, estes mesmos imperativos têm que ser reforçados pelo poder extraeconômico (ib.: 152-4). Por ironia, num sistema globalizado onde supostamente o Estado-nação estaria desaparecendo, a ordem global se mantém por um sistema de múltiplos Estados, onde importa quais são as forças locais que governam e como [6].
5. Conclusão
O presente trabalho procurou rever parte da literatura sobre imperialismo e hegemonia, verificando seus diferentes usos e definições. Observamos que a linha divisória entre ambos conceitos é tênue. De um lado, o termo hegemonia foi usado de forma mais ampla por autores marxistas e não-marxistas para indicar uma ordem mundial estável e “benévola”, ou ao contrário, uma ordem de dominação e imposição construída a partir de instituições que organizam o consenso e a coerção. De outro, o termo imperialismo (ou Império) foi usado por autores marxistas e críticos para indicar uma estrutura de poder que tem a partir do Estado americano o epicentro do capitalismo global. Em alguns casos, a ênfase nos meios de dominação econômico e militar leva à caracterização da ordem mundial como imperialista. Em outros, a ênfase nas instituições, soft power e concessões a poderes menores leva à caracterização da ordem como hegemônica, que também pode ser vista a partir da perspectiva gramsciana de universalização de regras, normas e valores particulares.
Lembramos que “uma teoria é sempre para alguém e para algum propósito” (Cox 2000). Todas as teorias têm uma perspectiva, que deriva de uma posição em tempo e espaço político e social. Parece pertinente a divisão de Cox entre “solução de problemas” e teoria crítica: a primeira diz respeito a problemas particulares dentro de uma ordem mundial tida como dada, sendo que a solução destes problemas objetiva o melhor funcionamento e a manutenção da própria ordem, e não a transformação desta; a segunda, ao contrário, se dirige ao complexo social e político como um todo, buscando as origens históricas e as relações sociais e de dominação que prevaleceram em uma determinada ordem mundial, para entender suas dinâmicas e buscar sua transformação (ib.). Autores que escrevem a partir do centro de poder, os EUA, com a intenção de explicar sua ascensão e entender seu declínio, mantêm intactas as premissas do sistema capitalista. Já autores marxistas e da teoria crítica buscam explicar a ordem de dominação e poder (ora caracterizada como hegemônica, ora como imperial) com a perspectiva de transformação histórica do sistema em sua totalidade. É necessário compreender ambas as perspectivas para dar conta de uma realidade social complexa e contraditória.
Anna Saggioro Garcia é doutoranda em Relações Internacionais na PUC-Rio. Membro da Fundação Rosa Luxemburg.
Notas
[1] O imperialismo é o domínio do capital financeiro, e implica o domínio do rentier ou oligarquia financeira (ib.: 59). Para Lenin, rentiers são aqueles que vivem de uma renda, “parasitas” e não investidores. Estados-rentiers são os poucos Estados credores frente a grande maioria de Estados devedores (ib.: 102-3).
[2] Impérios informais requerem a penetração econômica e cultural nos outros Estados, sustentada pela coordenação política e militar com governos independentes. O principal fator que determinou a mudança na extensão de impérios formais após 1880 foi a inabilidade da Inglaterra em incorporar os recentes poderes emergentes, Alemanha, EUA e Japão, no seu “imperialismo de livre-comércio” (ib.: 22).
[3] Para Keohane, regimes internacionais são modelos de comportamento cooperativo regulado na política mundial. Regimes fortes estabelecem um comportamento ordenado e previsível segundo padrões comuns aos participantes, enquanto que em regimes fracos, as regras se interpretam de forma diferenciada, e são frequentemente rompidas (ib.: 112).
[4] Arrighi diferencia entre caos e anarquia. Caos é a falta de ordem generalizada, enquanto que anarquia é a falta de uma autoridade central, podendo ser ordenada através de princípios, regras e normas comuns entre todos.
[5] Europa e Japão aceitaram o papel dos EUA como “banqueiro mundial” e apoiaram o dólar como reserva em troca de ter sua segurança garantida pelos EUA. Assim, estes puderam manter seu déficit fiscal sem constrangimento, o que possibilitou sua expansão militar e de capital para fora (ib.: 154 s.).
[6] A desordem criada pela ausência de poder de Estados efetivos (“Estados falidos”, “semiestados”, “eixo do mal”) ameaça um ambiente previsível e estável necessário para o capital, e devem ser colocados novamente em “ordem” sob a orbita dos EUA (ib.: 156).
Referências
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1. Introdução
Os conceitos de hegemonia e imperialismo são usados por autores representantes dos três principais paradigmas das Relações Internacionais (realismo, institucionalismo e marxismo) de formas diferentes, muitas vezes para explicar o mesmo: o estabelecimento de uma determinada ordem internacional sob dominação de uma potência. Algumas vezes “dominação”, “império” e “hegemonia” são usados de maneira intercalada, sem diferenciação; em outras, os mecanismos e meios com os quais a ordem dominante é estabelecida e mantida se distinguem, diferenciando uma ordem hegemônica de uma imperial. Alguns autores enfatizam os elementos do “consenso” na construção e manutenção da ordem, outros colocam à frente as diferentes formas de “coerção”. Ambas as caracterizações da ordem mundial podem ser tratadas de forma positiva (como uma liderança benévola) ou negativa (uma imposição de poder e subordinação de uns frente a outros), dependendo das visões de mundo e do posicionamento de cada autor.
O presente trabalho se propõe revisar parte da literatura existente sobre os conceitos de hegemonia e imperialismo por autores ligados a diferentes correntes de pensamento das RI, a fim de esclarecer como e quando cada um destes conceitos é usado. Primeiramente será averiguada algumas de usas definições, para depois analisar seus usos para caracterizar o período de dominação dos EUA após a segunda guerra mundial. Este breve ensaio não esgota a vasta literatura existente sobre estes conceitos, tampouco poderá fazer um estudo de caso detalhado. Propõe-se, no entanto, explicar as diferentes caracterizações e os elementos enfatizados em cada uma delas, procurando esclarecer parte do campo teórico do estudo da ordem mundial.
2. Imperialismo: definições e usos
O uso do termo “imperialismo” foi, por um longo tempo, restrito ao campo marxista. Mesmo as diversas intervenções militares estadunidenses durante a guerra fria não suscitaram o uso do termo pelas principais correntes de pensamento nas RI, uma vez que a situação da guerra fria justificava as estratégias geopolíticas. Segundo Borón (2006) e Foster (2006), o conceito de imperialismo reaparece de maneira inesperada a partir de seu “centro”, os EUA, com a “guerra ao terrorismo”. Os termos “império” e “imperialismo” econômico, militar ou cultural são retomados na mídia e na academia norte-americana e mundial, mas vistos como separados, dissociados do capitalismo, podendo ter inclusive uma conotação benévola (Foster 2006: 432-439; Borón 2006: 461).
Durante os anos 70, um dos poucos autores não-marxistas a trabalhar o tema do imperialismo foi Cohen (1976). O autor aponta que o termo ficou relegado a “panfletos políticos”, sendo necessário um método apropriado para redefini-lo, dando-lhe um significado “bem definido, eticamente neutro e objetivo” para que seja útil à análise da Economia Política Internacional (Cohen 1976: 15). Desde este ponto de partida, o autor define imperialismo como “tipo de relações internacionais caracterizadas por uma assimetria particular — a assimetria de dominação e dependência. [...] O imperialismo refere-se àquelas relações particulares entre nações inerentemente desiguais que envolvem subjugação efetiva, o exercício real da influência sobre o comportamento” (ib.: 20, grifos no original). O conceito seria operacional. A forma do imperialismo pode ser o controle direto, através da extensão da soberania política, ou indireto, com penetração econômica e pressões diplomáticas ou militares.
O autor baseia-se no realismo para afirmar que a política de poder é determinante da ordem internacional, e a raiz principal do imperialismo está na “organização anárquica” do sistema internacional. A anarquia vai disciplinar o comportamento dos Estados, levando-os à busca da maximização de sua posição de poder individual a fim de assegurar sua segurança nacional. Desta forma, o imperialismo teria sua origem “na organização externa dos Estados” (ib.: 223).
A visão de Cohen reflete o paradigma realista do sistema internacional. A expansão de poder (territorial, econômica, política e militar) dos Estados é justificada para manutenção de seus status quo, o que apresenta uma ambiguidade, uma vez que é necessário expandir e crescer para manter a situação original de poder. A política de expansão do Estado imperial se torna uma “escolha racional”, perdendo elementos morais e éticos. O poder adquire conotação neutra, e a política de poder e expansão se torna um movimento quase mecânico. As consequências da guerra, racismo, exploração e subalternização de outras nações, povos e classes, acabam sendo silenciadas. Observamos aqui a dissociação entre capitalismo e imperialismo. Outros autores também buscaram o uso historicamente específico do conceito de imperialismo e a separação de seus aspectos econômicos e políticos (ver, p. ex., Smith 1981).
É com os pensadores marxistas que o conceito de imperialismo será definido de forma mais complexa e abrangente. A teoria marxista clássica do imperialismo é de Lenin. Para este, o imperialismo do final do século XIX é consequência direta da fase de monopólio do capitalismo nos países avançados, ou seja, a combinação, em uma só empresa, de diferentes ramos da indústria (Lenin 2005/1916: 19). Este desenvolvimento leva também a uma centralização de capital-dinheiro em alguns bancos, que passam de simples operadores e intermediários, a “monopólios onipotentes”, que dispõem do capital-dinheiro da maior parte das indústrias, conferindo-lhes nova função: a capacidade de controle da economia de toda a sociedade (ib.: 31). Ao mesmo tempo, Lenin explica que a relação entre banqueiros e industriais não está absolutamente separada, mas, ao contrário, há antes uma “união pessoal”. Se os industriais só têm acesso a seu capital através dos bancos, também estes precisam colocar este enorme capital em investimentos de retorno. Assim é formado o “capital financeiro”, o capital bancário transformado em capital industrial (Hilferding, apud ib.: 47) [1].
Com a formação do capital financeiro inicia-se o processo chave do imperialismo capitalista: exportação de capital. O excedente de capital em alguns países é exportado para nações pré-capitalistas, onde são construídas as condições para o desenvolvimento capitalistas destas áreas (como ferrovias e infraestrutura), sempre dadas em troca de algo para proveito próprio, impondo gastos do mesmo empréstimo na compra de produtos do país credor. A exportação de capitais aumenta a exportação de mercadorias e, com isso, inicia-se o alargamento e aprofundamento do capitalismo em todo o mundo (ib.: 64-5).
Qual é o papel da guerra para Lenin? Enquanto ele entendia o imperialismo moderno a partir do (sustentado pelo) capital financeiro, Kautsky (1914) enfatizou o seu lado político. Para este, a ocupação e a subjunção de áreas agrárias produziram fortes contradições entre os países industrializados, levando a uma corrida armamentista. Contraditoriamente, a própria economia capitalista estaria ameaçada por esta competição, sendo de interesse dos próprios capitalistas a união pacífica entre os grandes Estados, se estes quiserem continuar explorando as áreas agrárias. Kautsky previa uma translação da cartelização do capital para a política externa: uma fase de “ultraimperialismo”, ou uma “aliança sagrada” entre Estados imperialistas. Quanto mais durasse a guerra, mais exaustos estariam seus participantes, fazendo-os querer evitar a repetição de conflitos armados.
Em resposta a Kautsky, Lenin reafirmava a centralidade do capital financeiro nesta fase do imperialismo, que mostrava tendência de anexação não só das áreas agrárias, mas também das industriais. O capital financeiro e os trustes acentuavam (e não diminuíam) as diferenças entre os ritmos de crescimento dos diferentes países e regiões da economia mundial. Com isso, “faz parte da própria essência do imperialismo a rivalidade de várias grandes potências nas suas aspirações por hegemonia, isto é, a apoderarem-se de territórios não tanto diretamente para si, como para enfraquecer o adversário e minar a sua hegemonia” (Lenin 2005/1916: 92). Perguntava, então: “como podem resolver-se as contradições, sob o capitalismo, a não ser pela força?” (ib.: 97, grifo no original). Uma aliança pacífica entre as potências seria uma trégua entre guerras, gerando um ciclo de formas de luta pacífica e não-pacífica sobre uma mesma base de vínculos imperialistas (ib.: 121).
Autores atuais apontam para a necessidade de avançar das teorias clássicas do imperialismo, uma vez que estas já são insuficientes para explicar a atual fase do capitalismo mundial. Para Panitch/Gindin (2004), o imperialismo demonstrava ser um movimento duplo e simultâneo: o aprofundamento do capitalismo para dentro e sua expansão para fora. Os autores afirmam que a relação entre capitalismo e imperialismo somente pode ser entendida a partir de uma teoria do Estado. Quando Estados pavimentam, monitoram ou administram o caminho para a expansão de seu capital para fora, isto só pode ser entendido em termos do papel relativamente autônomo do Estado na manutenção da ordem social e na garantia das condições de acumulação do capital dentro das fronteiras (Panitch/Gindin 2004: 7). Além de compreender a predominância conjuntural de um Estado, para a atual fase do imperialismo é necessário entender a penetração estrutural em antigos rivais pelo Estado imperial, característica principal do que eles chamarão de American informal empire [2].
Para Ellen Wood (2003), a lógica das teorias do imperialismo clássico é a mudança de foco de operações internas nos países capitalistas avançados para relações externas, ou interações e conflitos entre Estados capitalistas e o mundo não-capitalista (Wood 2003: 124-8). Enquanto no imperialismo tradicional a dominação colonial e exploração econômica eram transparentes, a principal caracterização do “novo imperialismo” é a dominação não-direta, que torna as relações opacas. As formas de coerção econômicas são diferentes da política e militar: a “compulsão” é impessoal, opera como imposição do “mercado”. As relações são formalmente reconhecidas e se dão entre entidades legalmente iguais e livres, ou seja, Estados soberanos, assim como trabalhadores e patrões, credores e devedores (ib.: 1-4). Mas a coerção “extraeconômica” — política, militar, jurídica — se mantém essencial, especialmente quando ações militares dos principais países são fundamentadas pela “neutralidade dos interesses da sociedade internacional” (ib.: 5).
Portanto, para entender o “novo imperialismo”, é necessário entender a natureza da relação entre forças econômicas, políticas, militares e ideológicas no capitalismo. Este é especialmente capaz de dissociar o econômico do extraeconômico, porém, segundo Wood, o Estado-nação é mais essencial ao capital que nunca. Somente ele pode ser o garantidor administrativo e coercivo da ordem social, das relações de propriedade, da estabilidade e previsibilidade contratual, ou de qualquer outra condição básica requerida pelo capital em seu cotidiano (ib.: 139). Com isso, o novo imperialismo depende cada vez mais de um sistema de múltiplos Estados e soberanias locais, ao mesmo tempo em que, para administrar este múltiplo sistema de Estados, é necessário um único poder militar, capaz de manter todos “na linha” (ib.:142), função exercida pelos EUA.
3. Hegemonia: definições e usos
O conceito de hegemonia é usado de maneira mais abrangente do que imperialismo, tendo sido incorporado em boa medida por realistas e institucionalistas das Relações Internacionais. Império e hegemonia têm algo em comum — o exercício da liderança —, porém há divergência sobre a finalidade, forma e os instrumentos com os quais esta liderança é exercida.
Para Agnew (2005), hegemonia e império se diferem no tipo de poder e sua organização geográfica. Se o “poder rígido” está ancorado na coerção militar, e o soft power em valores culturais e preferências, a organização geográfica de poder varia entre fortemente territorial ou difusa e “enredada” (Agnew 2005: 21). A diferença de hegemonia para império estaria na falta de comprometimento explícito para com o bloco territorial de poder em si, e no seu embasamento em persuasão e recompensa aos subordinados. O autor define hegemonia como a participação de outros no exercício do seu próprio poder, “convencendo-os, bajulando ou coagindo a querer aquilo que você quer” (ib.: 2).
Certamente a base para esta diferenciação está no conceito de hegemonia de Gramsci. Sua definição foi popularizada pela equação “consenso + coerção”. As reflexões de Gramsci, no entanto, têm como ponto de partida um questionamento específico num período histórico concreto: como explicar a vitória do fascismo na Itália? A complexidade e refinamento de sua teoria advém, portanto, da perspectiva de uma derrota (os inimigos estavam no poder), e de uma reflexão sobre as táticas e estratégias do inimigo, para poder derrotá-lo.
O conceito de hegemonia de Gramsci refere-se diretamente a sua noção de Estado de forma ampliada: sociedade política e sociedade civil. A hegemonia se forma com a supremacia de determinado grupo ou classe social e sua liderança moral e intelectual na sociedade civil. Este grupo exerce liderança antes de chegar ao governo. Neste momento ele se torna dominante, mas mesmo depois de se afirmar no poder, não pode deixar de “liderar” (Gramsci 1971: 58). Para Gramsci, “dominar” não é igual a “liderar”: este requer certas concessões aos grupos subordinados, para que eles “concedam” (mesmo que indiretamente) e se tornem parte do projeto de dominação de dado grupo.
A hegemonia pressupõe, portanto, levar em consideração os interesses e tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia deve ser exercida. Isto significa que o grupo dominante terá que fazer certos sacrifícios de tipo econômico-corporativo, desde que não toquem no essencial de seu poder econômico (ib.: 161). Este “equilíbrio compromissado” faz com que o desenvolvimento e expansão do grupo particular sejam concebidos e apresentados como força-motriz de uma expansão universal. Segundo Gramsci, o Estado se torna o reflexo destes interesses particulares apresentados como universais (ib.: 182).
A hegemonia da classe dominante é, assim, institucionalizada no aparato político, mas formada e sustentada na esfera na sociedade civil (Estado ampliado). Quando a classe dominante perde o consenso na sociedade, ela não exerce liderança, mas dominação, precisando para isso exercer força coerciva (ib.: 272). A ideologia liberal buscou separar o Estado da sociedade civil, afirmando que a atividade econômica pertence a ela, e o Estado não deve intervir nem regulá-la. Mas se ambos são parte do mesmo, então, segundo Gramsci, “deve estar claro que o liberalismo também é uma forma de regulação estatal, introduzida por meios legislativos coercivos” (ib.: 160). Hegemonia e sociedade civil são, portanto, dois conceitos interdependentes e devem ser pensados de forma conjunta (Buttigieg 2005).
Alguns autores críticos e marxistas buscaram adequar o conceito gramsciano em sua complexidade para as Relações Internacionais. No entanto, na concepção predominante na academia norte-americana, o realismo, a visão de hegemonia é centrada no poder do Estado em sua forma simples: instituição de autoridade política. Um expoente do realismo, Gilpin, equivale poder, hegemonia, império e Estado dominante como sinônimos. Para ele, a história demonstra que a guerra tem sido inevitável para solucionar tensões geradas pelo desequilíbrio na distribuição de poder no sistema internacional. Hegemonia é consequência inevitável da vitória de pelo menos um Estado ou grupo (Gilpin 1981: 197-8). Segundo o autor, uma guerra hegemônica se caracteriza por: contestação direta entre poder dominante e Estados revisionistas, mudanças na natureza e a governança no sistema, e meios de violência quase ilimitados (ib.: 200). As grandes transformações na história mundial foram derivadas de guerras hegemônicas entre rivais políticos, cujo resultado é o re-ordenamento do sistema a partir de ideias e valores do Estado vencedor (ib.: 203).
Gilpin afirma que marxistas e realistas compartilham da visão de que, enquanto for possível a expansão territorial e de recursos, a lei do desenvolvimento desigual pode operar sem alterar a estabilidade do sistema como um todo. No entanto, quando seus limites são alcançados, o sistema entra em crise, o que levou a uma intensificação do conflito e ao colapso final do sistema em duas grandes guerras (ib.: 201). Observa-se que o mesmo processo histórico caracterizado por Gilpin como guerra hegemônica, para Lenin é denominado guerra inter-imperialista.
Ao contrário de Gramsci, Gilpin afirma que a tática de fazer concessões aos poderes menores para assegurar o status quo pode demonstrar um sinal de enfraquecimento do hegemon, gerando um ciclo vicioso de demandas por mais concessões (ib.: 207). Este ponto expõe a diferença da concepção de hegemonia como poder militar, política, territorial e econômico (semelhando a imperialismo), inversamente de autores que trabalham com “consenso e coerção”. Para estes, a habilidade de construção de consenso a partir de concessões legitimará a liderança do hegemon, que usará a coerção somente quando necessário. Assim, as formas de concessão e compromissos internacionais são instrumentos de legitimação do poder.
Gilpin aponta que paz se equivale a uma “estabilidade hegemônica”, uma vez que ela é assegurada e vigiada por um poder maior, que coordena a política mundial a partir da sua visão de mundo (ib.: 209). Também Kindleberger (1973) aponta que a crise e a Grande Depressão dos anos 30 poderia ter sido evitada se a Inglaterra tivesse tido capacidade, e os EUA vontade política de exercer liderança (Kindleberger 1973: 291-2). Ambos foram incapazes de preservar o “bem público”, voltando-se para si, privilegiando questões particulares ao invés do bem comum, que seria a estabilidade do sistema como um todo. As visões de Gilpin e Kindleberger deram origem à chamada “teoria da estabilidade hegemônica”, desenvolvida posteriormente por Keohane (1993), expoente do paradigma institucionalista das RI. De acordo com este, as estruturas hegemônicas de poder dominadas por um só país conduzem à formação de regimes internacionais fortes, com regras precisas e obedecidas por todos (Keohane 1993: 111) [3]. Os regimes econômicos internacionais fortes dependem de um poder hegemônico, ao passo que fragmentação do poder entre países em competição leva à fragmentação do regime. A concentração de poder indica, portanto, estabilidade.
Keohane afirma que poderes maiores e menores têm incentivos para colaborar dentro de um regime internacional: “a potência hegemônica ganha capacidade de configurar e dominar seu entorno internacional, enquanto que administra um fluxo suficiente de benefícios a pequenas e médias potências para convencê-las de que coincidem [em interesses]” (ib.: 115). Por outro lado, na medida em que a distribuição de recursos (especialmente econômicos) se torna mais equitativa, aumentam os custos do hegemon em manter estabilidade e o cumprimento das regras, e os regimes se debilitam. Inicia-se assim um período de transição e de instabilidade (ib.: 116-7).
Nota-se aqui que a hegemonia adquire uma conotação benigna. Assim como um “Leviatã” daria fim a um “estado de natureza de todos contra todos”, também o hegemon pode minimizar os efeitos da anarquia internacional. Desta forma, o “bem comum” (estabilidade, paz, ordem) seria garantido. Diferentemente de Gramsci, quem, através do conceito de hegemonia, denunciava a opressão e subalternidade de uma classe frente a outra, para estes teóricos do realismo e do institucionalismo, a desigualdade social e internacional não é um mal em si, podendo ser “um mal necessário” para garantir a ordem do sistema.
Autores críticos buscaram revidar a noção de uma hegemonia “benévola”, trabalhando, a partir da teoria gramsciana, os instrumentos de manutenção do poder na ordem mundial. Cox (1987) define hegemonia como uma dominação de forma particular, onde um Estado cria uma ordem baseada ideologicamente em ampla medida de consentimento, funcionando de acordo com princípios gerais que, de fato, asseguram a contínua supremacia do Estado líder, e sua classes social dominante, oferecendo, ao mesmo tempo, alguma medida de satisfação aos menos poderosos (Cox 1987: 7). Deste modo, para se tornar hegemônico, um Estado precisa fundar ou proteger uma ordem que seja universal em sua concepção, mas em que outros Estados sintam em parte compatível com seus próprios interesses (Cox 1993: 61).
Neste tipo de ordem, a produção em países particulares se torna conectada ao sistema mundial de produção. A classe dominante no Estado hegemon encontra aliados em classes de outros países. Uma sociedade mundial incipiente emerge no sistema interestatal, e os próprios Estados se tornam internacionalizados, de modo que seus mecanismos e políticas são ajustadas ao ritmo da ordem mundial (Cox 1987: 7). Assim, a hegemonia mundial se forma sobre uma sociedade civil globalmente concebida, e não somente a partir das relações interestatais.
Um importante mecanismo de universalização de normas da hegemonia mundial são as organizações internacionais. Através delas são incorporadas as regras que facilitam a expansão de ordens mundiais hegemônicas, legitimando ideologicamente as normas desta ordem. Ao mesmo tempo, elas mesmas são produto da hegemonia de um Estado dominante, e são capazes de facilitar a cooptação de elites dos países periféricos, e absorver ideias contra-hegemônicas (Cox 1993: 62). Para Arrighi (1993), a formação de uma hegemonia mundial está diretamente ligada à formação social hegemônica da classe dominante no âmbito doméstico. Um Estado se torna hegemônico mundialmente quando pode reivindicar com credibilidade que é a força-motriz da uma expansão universal do poder coletivo de sua classe dominante com relação a outros Estados, assim como com relação às classes subalternas (Arrighi 1993: 151). Este tipo de reivindicação é mais plausível em situações de caos sistêmico, onde há falta de organização generalizada e escalação de conflitos [4]. Na medida em que o caos sistêmico aumenta, a demanda pela instalação de ordem se generaliza entre dominantes e dominados. Qualquer Estado em condições de satisfazer esta demanda se apresenta como potencial hegemon (ib.).
4. Ordem mundial capitalista após a II Guerra: Pax Americanna ou American Empire?
Buscamos apresentar até aqui algumas das diferentes definições e aplicações dos conceitos de imperialismo e hegemonia na literatura marxista, realistas e institucionalistas das RI. Estas diferenças conduzirão à caracterização distinta do período de dominação dos EUA após a II Guerra Mundial. Para os autores realistas e institucionalistas que fazem uso do termo hegemonia, a Pax Americanna foi uma forma benévola de ordem mundial, na qual as instituições e regimes internacionais foram privilegiados para organizar a coesão contra a ameaça soviética, o que, em grande medida, significou mais custos aos EUA, se comparado a poderes hegemônicos anteriores.
Gilpin (1975) enfatiza o papel das empresas multinacionais como principal instrumento da hegemonia global americana, cujos outros pilares são a posição do dólar como moeda de troca internacional, e a supremacia militar e nuclear (Gilpin 1975: 138-40). Segundo o autor, os interesses das corporações e o interesse nacional dos EUA se sobrepõem e complementam: a expansão mundial das corporações atendem aos interesses geopolíticos americanos, sendo elas território de controle e legislação dos EUA, assim como ajudam a atenuar o déficit fiscal do dólar; ao mesmo tempo, a política externa americana apóia a expansão das empresas, com crédito, acordos comerciais, e seu peso como poder hegemônico mundial (ib.: 146-7). Com efeito, os lucros feitos pelas companhias no exterior apóiam o Estado americano a cobrir gastos pesados em operações diplomáticas e militares, tendo sido essenciais para financiar a posição hegemônica global dos EUA (ib.: 149).
Gilpin afirma que a construção de hegemonia através de alianças (especialmente com Europa e Japão) [5] demandou concessões, como por exemplo a tolerância da concorrência econômica. Instrumentos diretos de transferência de capital, como o plano Marshall, colocaram aos EUA um peso financeiro, que não ocorreu com a Inglaterra em seu período auge (ib.: 151).
Keohane (1993) aponta que a liderança hegemônica dos EUA durante a década de 1950 foi responsável, administrando benefícios a seus aliados, mas também lhes impondo restrições. Os EUA fizeram sacrifícios de curto prazo para criar uma ordem “próspera e estável” a seu favor no longo prazo. Os interesses do “mundo livre” se combinavam com os interesses dos EUA para determinar uma estratégia de liderança, facilitada em grande medida pela ameaça soviética (Keohane 1993: 315-21). No entanto, a “longa década” de 50 foi frágil e curta, uma vez que os EUA não puderam administrar bem a combinação dos interesses particulares internos com a preocupação de manter alianças internacionais. Keohane aponta que os EUA teriam contraído a “enfermidade dos fortes” — a negação em ajustar-se às mudanças —, especialmente nas áreas de finanças e petróleo, onde a política norte-americana estava debilitada pela incoerência entre demandas políticas internas e os imperativos internacionais de longo prazo (ib.: 347).
Ikenberry (2001) caracteriza a ordem mundial nos anos 90 como “hegemonia de acionistas”: uma forma benévola de poder (soft power) construída pelos EUA a partir de suas instituições domésticas democráticas, maduras, abertas, com regras previsíveis e vinculadas a uma rede de instituições multilaterais. Através destas são estabelecidas parcerias estáveis e vinculantes, que asseguram a ordem econômica e militar dominada pelos EUA, ao mesmo tempo que constrangem e restringem o poder de ação do próprio hegemon (Ikenberry 2001: 20-2). Desta forma, a ordem hegemônica construída pelos EUA seria um espelho de suas próprias instituições domésticas (ib.: 19).
Este ambiente muda com o 11 de Setembro de 2001. O termo “Império Americano” é retomado com otimismo por neoconversadores, e a administração Bush afirma uma “soberania contingente” e o direito de intervenção preventiva (Ikenberry 2004). Para o autor, porém, o termo “Império” não cabe para descrever a estrutura de dominação americana. Se, de fato, os EUA mantiveram políticas imperiais frente à América Latina e ao Oriente Médio, com relação à maior parte dos países, a ordem mundial teria sido um sistema negociado, em que os EUA buscaram a participação de outros Estados em termos mutuamente acordados. O império americano seria um “ilusão”, pois suas instituições limitam e legitimam seu próprio poder (ib.).
Contrariamente a esta argumentação, pode-se afirmar que as instituições e organizações internacionais não serviram para constranger ou limitar o poder dos EUA, senão para alcançar a universalização de normas e expandir sua hegemonia mundial (Cox 1989; 1993). Cox aponta para dois fenômenos centrais do período da Pax Americanna: a internacionalização da produção — enquanto a força de trabalho permaneceu fragmentada pelas múltiplas soberanias estatais — e a internacionalização do Estado, que passou a ajustar no plano doméstico as imposições da economia globalizada e a participar da formação do consenso internacional estruturado hierarquicamente (Cox 1989: 244-254). Arrighi (1993) aponta para a relativa reconfiguração do Estado, com considerável restrição de direitos e poderes dos Estados soberanos pelas instituições da hegemonia americana. Os princípios, normas e regras aos quais os Estados eram submetidos aumentaram e se tornaram mais estreitas (se comparadas ao período de hegemonia britânica), enquanto o crescente número de organizações supranacionais adquiriram mais poder autônomo para “sobregovernar” o sistema interestatal (Arrighi 1993: 182).
Pode-se observar que a ordem hegemônica estabelecida pelos EUA no mundo capitalista no pós-Segunda Guerra transcende o poder bélico e tem nas instituições internacionais (organizações interestatais e corporações privadas) seus pilares de legitimação e imposição da ordem. No entanto, o consenso atingido através de alianças e instituições não poderia dispensar o elemento militar, principal mecanismo de poder entre as potências da Guerra Fria. Para Magdoff (1975), o imperialismo e o militarismo são fatores determinantes da evolução e da supremacia tecnológica americana, assim como da repatriação das riquezas no interior do país. A guerra deve ser entendida em seu sentido amplo, abarcando todos os tipos de intervenção militar (Magdoff 1975: 33). As despesas militares americanas têm impacto na provisão de matérias-primas, desenvolvimento de bens duráveis e pesquisa tecnológica de alto nível, tendo impactos assim em toda a economia.
Para Panitch/Gindin, o imperialismo atual se caracteriza pela capacidade do Estado americano de penetrar e coordenar os outros Estados líderes capitalistas. O dinamismo do capitalismo americano e o seu apelo mundial, combinado com uma linguagem universalista da ideologia de democracia liberal, apoiam a capacidade do império informal de ir além dos impérios anteriores. Segundo os autores, somente o Estado americano reivindicava para si o direito de intervir contra a soberania de outros países, e somente ele reservou para si o direito “soberano” de rejeitar normas e regras internacionais, quando necessário. Neste sentido, only the American State was actively ‘imperialistic’ (Panitch/Gindin 2004: 16). Assim, a ordem capitalista mundial se organizou e regulou pela via de reconstrução de outros Estados como elementos integrais do império informal americano.
Os autores se diferenciam dos teóricos críticos baseados em Gramsci, ao afirmarem que, mesmo com toda a penetração cultural e econômica, nunca houve uma “transferência de lealdade popular direta” de outros povos aos EUA. (ib.: 32). Tampouco os EUA tiveram que incorporar demandas das classes subordinadas em outros Estados dentro da construção de seu império. O consentimento ativo para a dominação do império informal sempre foi mediado pela legitimidade que os outros Estados mantinham para si em nome de qualquer projeto particular do Estado americano (ib.). De todos modos, o recorrente uso de intervenções militares ao redor do mundo demonstram que esta legitimidade foi muitas vezes difícil de ser alcançada, e a formação de um consenso dentro das instituições hegemônicas não é suficiente.
A centralidade da força militar em combinação a força econômica dos EUA é caracterizada por Wood como surplus imperialism (Wood 2003: 143). Por que um aparato militar tão grande quando não há um inimigo claro a ser combatido? Este é o paradoxo do novo imperialismo. O poder militar não está desenhado para conquistar novos territórios nem derrotar um inimigo, não busca dominação territorial ou física, contraditoriamente produziu uma capacidade militar desproporcional com alcance global. Isso de dá, segundo a autora, precisamente por não haver inimigos nem objetivos claros e finitos: a dominação sem fronteiras de uma economia global e um múltiplo sistema de Estados para administrá-la requerem ação militar sem propósito, tempo e fim (ib.: 144). Substituem-se doutrinas tradicionais de guerra por um novo princípio de “guerra sem fim”, pelo qual ações militares são justificadas sem expectativa de seu objetivo será alcançado (ib.: 149). Diferentemente do antigo, que se baseava na expansão do capital para áreas pré-capitalistas, o novo imperialismo se baseia na própria universalidade do capitalismo. Wood ressalta que a força militar apoia seu alcance global. Enquanto os imperativos de mercado têm um alcance que vão além do poder de um único Estado, estes mesmos imperativos têm que ser reforçados pelo poder extraeconômico (ib.: 152-4). Por ironia, num sistema globalizado onde supostamente o Estado-nação estaria desaparecendo, a ordem global se mantém por um sistema de múltiplos Estados, onde importa quais são as forças locais que governam e como [6].
5. Conclusão
O presente trabalho procurou rever parte da literatura sobre imperialismo e hegemonia, verificando seus diferentes usos e definições. Observamos que a linha divisória entre ambos conceitos é tênue. De um lado, o termo hegemonia foi usado de forma mais ampla por autores marxistas e não-marxistas para indicar uma ordem mundial estável e “benévola”, ou ao contrário, uma ordem de dominação e imposição construída a partir de instituições que organizam o consenso e a coerção. De outro, o termo imperialismo (ou Império) foi usado por autores marxistas e críticos para indicar uma estrutura de poder que tem a partir do Estado americano o epicentro do capitalismo global. Em alguns casos, a ênfase nos meios de dominação econômico e militar leva à caracterização da ordem mundial como imperialista. Em outros, a ênfase nas instituições, soft power e concessões a poderes menores leva à caracterização da ordem como hegemônica, que também pode ser vista a partir da perspectiva gramsciana de universalização de regras, normas e valores particulares.
Lembramos que “uma teoria é sempre para alguém e para algum propósito” (Cox 2000). Todas as teorias têm uma perspectiva, que deriva de uma posição em tempo e espaço político e social. Parece pertinente a divisão de Cox entre “solução de problemas” e teoria crítica: a primeira diz respeito a problemas particulares dentro de uma ordem mundial tida como dada, sendo que a solução destes problemas objetiva o melhor funcionamento e a manutenção da própria ordem, e não a transformação desta; a segunda, ao contrário, se dirige ao complexo social e político como um todo, buscando as origens históricas e as relações sociais e de dominação que prevaleceram em uma determinada ordem mundial, para entender suas dinâmicas e buscar sua transformação (ib.). Autores que escrevem a partir do centro de poder, os EUA, com a intenção de explicar sua ascensão e entender seu declínio, mantêm intactas as premissas do sistema capitalista. Já autores marxistas e da teoria crítica buscam explicar a ordem de dominação e poder (ora caracterizada como hegemônica, ora como imperial) com a perspectiva de transformação histórica do sistema em sua totalidade. É necessário compreender ambas as perspectivas para dar conta de uma realidade social complexa e contraditória.
Anna Saggioro Garcia é doutoranda em Relações Internacionais na PUC-Rio. Membro da Fundação Rosa Luxemburg.
Notas
[1] O imperialismo é o domínio do capital financeiro, e implica o domínio do rentier ou oligarquia financeira (ib.: 59). Para Lenin, rentiers são aqueles que vivem de uma renda, “parasitas” e não investidores. Estados-rentiers são os poucos Estados credores frente a grande maioria de Estados devedores (ib.: 102-3).
[2] Impérios informais requerem a penetração econômica e cultural nos outros Estados, sustentada pela coordenação política e militar com governos independentes. O principal fator que determinou a mudança na extensão de impérios formais após 1880 foi a inabilidade da Inglaterra em incorporar os recentes poderes emergentes, Alemanha, EUA e Japão, no seu “imperialismo de livre-comércio” (ib.: 22).
[3] Para Keohane, regimes internacionais são modelos de comportamento cooperativo regulado na política mundial. Regimes fortes estabelecem um comportamento ordenado e previsível segundo padrões comuns aos participantes, enquanto que em regimes fracos, as regras se interpretam de forma diferenciada, e são frequentemente rompidas (ib.: 112).
[4] Arrighi diferencia entre caos e anarquia. Caos é a falta de ordem generalizada, enquanto que anarquia é a falta de uma autoridade central, podendo ser ordenada através de princípios, regras e normas comuns entre todos.
[5] Europa e Japão aceitaram o papel dos EUA como “banqueiro mundial” e apoiaram o dólar como reserva em troca de ter sua segurança garantida pelos EUA. Assim, estes puderam manter seu déficit fiscal sem constrangimento, o que possibilitou sua expansão militar e de capital para fora (ib.: 154 s.).
[6] A desordem criada pela ausência de poder de Estados efetivos (“Estados falidos”, “semiestados”, “eixo do mal”) ameaça um ambiente previsível e estável necessário para o capital, e devem ser colocados novamente em “ordem” sob a orbita dos EUA (ib.: 156).
Referências
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Um comentário:
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