Contra a
visão da modernidade como um momento em que a arte se fecha sobre si mesma, o
filósofo francês Jacques Rancière aponta elementos do projeto modernista que
postulam a arte como um espaço livre de hierarquias, “aberto a qualquer um”.
Rancière conversou com O GLOBO durante passagem recente pelo Rio, quando
participou de um seminário em sua homenagem na UFRJ e lançou três livros,
"O espectador emancipado" (Martins Fontes, tradução de Ivone C.
Benedetti), "As distâncias do cinema" (Contraponto, tradução de
Estela dos Santos Abreu) e "O destino das imagens" (Contraponto,
tradução de Monica Costa Netto). Na entrevista, o filósofo diz que a política
da arte não está em forjar “explicações do mundo” e sim “laços comunitários”, e
sugere que o conceito de “emancipação intelectual”, formulado por um pedagogo
revolucionário do século XIX, pode ser útil ao artista contemporâneo.
Por Guilherme Freitas
Em livros e palestras, você tem discutido a necessidade de repensar a noção
de “modernidade estética”. Como define essa noção e por que é preciso
repensá-la?
Todo meu trabalho tem sido uma crítica à visão dominante da modernidade como um
processo de autonomização da arte. No coração dessa visão dominante está a
ideia da arte moderna como uma ruptura clara com a representação, um processo
no qual cada arte foi criando um mundo autônomo e cada vez mais centrado em sua
própria linguagem, por assim dizer, como no caso da pintura abstrata ou da
música dodecafônica. Prefiro falar na modernidade artística como uma passagem
de um regime representativo da arte a um regime estético da arte. O universo da
representação é essencialmente hierárquico, ele funciona por meio de uma
seleção que diz que certas coisas pertencem a ele e outras não. Nele, um
sujeito pode inclusive definir uma forma artística: no mundo clássico tínhamos
a tragédia para os nobres e a comédia para as plateias populares, por exemplo.
Meu argumento é que a modernidade estética, ao romper com esse universo
representativo hierárquico, oferece uma definição da arte como mundo autônomo
mas também, ao mesmo tempo, postula a arte como um espaço desierarquizado,
aberto a qualquer um e no qual não há separação rígida entre formas artísticas.
Que elementos do projeto modernista permitem essa interpretação?
Tento recolocar no centro do projeto modernista algo que faz parte dele mas foi
contornado e deixado de lado a certa altura do século XX, que foi a tentativa
de chegar a uma espécie de interpenetração entre as formas de arte e as formas
de vida. Hoje costumamos pensar no modernismo e nas vanguardas como momentos em
que a arte tentou se separar da vida. Esse julgamento escanteia elementos
fundamentais do próprio projeto modernista, por isso tento evitá-lo. Falei
disso em um livro sobre Mallarmé (“A política da sereia”, de 1998). Ele é
considerado o poeta modernista por excelência por fazer do poema uma espécie de
pensamento da língua sobre ela mesma. Tento argumentar que no coração do
trabalho de Mallarmé há uma visão sobre o lugar do poeta na economia simbólica
da sociedade e da linguagem, um desejo de devolver à poesia algum tipo de
função social. Insisto que para Mallarmé o moderno da poesia tem que ser
buscado além da poesia, nos espetáculos considerados populares, nas pantomimas,
na dança, na música.
Como essa quebra de hierarquias se manifesta na linguagem do cinema, que tem
sido objeto frequente dos seus estudos?
Uma experiência definitiva na minha formação, nos anos 60, foi o movimento da
“cinefilia” na França. Foi um momento de grande revisão das hierarquias
artísticas. O debate sobre o cinema estava em plena efervescência, alguns viam
nele uma vocação para ser a arte moderna por excelência, outros apenas um
passatempo para as massas, comparável ao circo ou a uma quermesse. A
“cinefilia” francesa dos anos 50 e 60 foi uma espécie de intervenção nesse
debate, afirmando, por um lado, que um grande filme não era apenas aquele
composto por imagens requintadas e ambições metafísicas, e, por outro lado, que
também havia grande arte nos filmes populares. Grande não era só um filme de
Antonioni, também podia ser uma comédia de Vincente Minnelli ou um western de
Anthony Mann. Historicamente, o cinema se aproveitou dessa ambiguidade para se
tornar uma arte que é difícil classificar no espectro estético, e mesmo no seu
interior é difícil classificar os filmes numa cadeia de valor. Basta pensar em
alguém como Chaplin, que foi ao mesmo tempo um clown popular e o grande ícone
da modernidade, mais até do que Mondrian, Kandinsky ou Schoenberg.
Você mencionou a “interpenetração entre formas de arte e formas de vida”.
Como essa ideia se liga com outra preocupação central em seu trabalho, a
relação entre estética e política? Na sua opinião, o que pode ser uma “arte
política” hoje?
Não há uma definição unívoca de “arte política”, porque não estamos mais nesse
regime que chamo de “representativo” e, portanto, não se pode tentar antecipar
o efeito de uma obra de arte. Há uma noção convencional de “arte política” que
denota o desejo, por parte do artista, de expor uma injustiça ou de afirmar a
necessidade de reformas na maquinaria social. Mas essa noção faz parte de uma
ideologia representativa que supõe a existência de um público homogêneo sobre o
qual agiriam as intenções do artista. Hoje vivemos num mundo em que o artista
não pode antecipar as consequências do seu trabalho e há diversos modelos de
arte política. O mais interessante me parece ser aquele no qual a arte não é
apenas um meio para transmitir noções sobre a vida, e sim uma forma de vida ela
mesma. Um antecedente disso seria o projeto cinematográfico de Vertov, por exemplo,
que não era uma tentativa de representar a realidade comunista, mas sim de se
constituir como um laço comunitário. É uma arte que se pensa como capaz de
criar, por sua prática, o tecido de novas formas de vida.
Você costuma definir a relação entre estética e política usando o conceito
de “partilha do sensível”. Poderia dar um exemplo dessa operação?
O modelo da arte que assume um compromisso político teve em Brecht uma
referência. Brecht almejava desestabilizar a percepção do espectador para que,
no espaço da obra, ele visse como absurdo aquilo que considerava normal,
produzindo assim alguma transformação em seu espírito, que poderia ser
canalizada em energia para ações transformadoras. Esse raciocínio é muito
problemático, claro. “Desestabilizar a percepção” era um princípio surrealista
que Brecht tentou transmutar em pedagogia política. Isso nunca produziu efeitos
políticos verificáveis, só produziu uma certa concepção do que uma “arte
política” deveria ser. Mas há outro modelo de compromisso político, que está um
pouco esgotado mas precisa ser renovado, que concebe o trabalho político do
artista como a investigação de determinado aspecto da realidade que está
enquadrado, estereotipado ou formatado pelo senso comum, na tentativa de
devolvê-lo à realidade sensível. Esse modelo é importante para pensarmos na
arte não como uma pedagogia ou explicação do mundo, e sim como uma
reconfiguração do mundo sensível. Vejo isso no trabalho do cineasta português
Pedro Costa, por exemplo. Em seus filmes com comunidades de imigrantes em
Portugal (como “Juventude em marcha” e “O quarto de Vanda”), ele não está
interessado apenas em descrever a miséria ou denunciar a exploração, mas sim em
tornar sensível esse universo, em restituir a força da experiência e da palavra
aos excluídos.
Você trabalhou com o conceito de “partilha do sensível” em seus estudos
sobre o realismo literário do século XIX. Como essa ideia de reorganização dos
elementos sensíveis se manifesta na literatura?
A pergunta de fundo da arte política é: o que constitui uma comunidade? A
grande contribuição do romance realista não foi só representar os pobres, os
trabalhadores e as “pequenas vidas”. Foi romper no espaço da obra de arte a
cisão que existia entre eles e o resto da sociedade, realizando um trabalho de
desierarquização. Afirmar que qualquer vida, qualquer evento pode ser
interessante. Por meio de uma técnica formal que abandona a noção de trama
tradicional para investir em microeventos, a literatura põe em cena vidas de pessoas
quaisquer, oferecendo uma alternância de universos sensíveis. E nisso há algo
que não se restringe ao realismo do século XIX. Quando uma escritora como
Virginia Woolf, em seu ensaio “Ficção moderna”, denuncia a “tirania da trama”,
ela está postulando o romance moderno como uma grande democracia dos eventos.
De certa forma esse foi o grande paradoxo e a força do romance do século XX:
como subverter a “tirania da trama” e identificar o curso dos eventos
sensíveis, colocando em cena essas vidas quaisquer e também as cicatrizes da
Justiça e da História?
No livro “O espectador emancipado”, você retoma o conceito de “emancipação
intelectual” discutido em uma obra anterior, “O mestre ignorante”, e o aplica
ao universo das artes. Como define essa “emancipação”?
Recuperei o conceito de “emancipação intelectual” de um personagem
extravagante, o pedagogo francês Joseph Jacotot (1770-1840). Nas primeiras
décadas do século XIX, ele defendeu uma ideia que ia contra o modelo de
educação que começava a se cristalizar na época: a ideia de que há pessoas
ignorantes, que não compreendem as coisas, não têm cultura nem conhecimento, e
que por isso precisam de ajuda para progredir ao nível das pessoas cultas.
Jacotot dizia que não é nada disso, que a igualdade não é um ponto de chegada e
sim um ponto de partida, e que não se deve “instruir” as pessoas para que se
tornem iguais, e sim partir do princípio de que elas são iguais por terem,
todas elas, suas próprias aptidões e conhecimentos. Era uma ideia radical,
muito combatida na época, que julguei importante recuperar.
E qual pode ser o lugar das artes nesse processo de “emancipação”?
Creio que a questão não é tanto o que as artes podem fazer pela emancipação das
pessoas, mas sim o que podem fazer para emancipar a si mesmas. Os artistas só
poderão contribuir para a emancipação se entenderem que se dirigem a
semelhantes, em vez de achar que estão transformando ignorantes em sábios. Isso
só é possível se a instituição artística colocar seus princípios em questão
permanentemente. Assim como um pedagogo não pode achar que está lidando com
aprendizes incapazes, um artista não pode tentar antecipar o que o espectador
deve ver ou compreender. Nessa nebulosa confusa que chamamos de arte
contemporânea, abraçar a dúvida sobre as capacidades da arte pode ter uma
função emancipatória.
Fonte: Prosa & Verso / O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário