Para sociólogo Bernardo Sorj, do Rio
de Janeiro, política não é religião secularizada e declarar-se a serviço da
população não significa ter o monopólio do bem
Paula Sacchetta e Ivan Marsiglia
Quase três décadas após a
redemocratização, o Brasil da Operação Porto Seguro pode confiar na segurança
de suas instituições? Deflagrada pela Polícia Federal, a investigação revelou
um esquema de venda de pareceres técnicos, tráfico de influência e corrupção em
órgãos federais e agências reguladoras envolvendo, entre outros, a chefe de
gabinete da Presidência da República em São Paulo, Rosemary Noronha -
personagem próxima do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. De Brasília,
Dilma Rousseff afastou prontamente os envolvidos. De Berlim, Lula quebrou o
silêncio apenas na última sexta-feira para dizer, sem mais explicações, que
“não ficou surpreso” com o caso. No mesmo dia, Paulo Vieira, o ex-diretor da
Agência Nacional de Águas (ANA), pediu exoneração do cargo e o Planalto aguarda
atitude idêntica de seu irmão, Rubens Vieira, diretor da Agência Nacional de
Aviação Civil (Anac). Para piorar, por conta do envolvimento de seu adjunto,
José Weber Holanda, a lama tisnou a reputação do advogado-geral da União, Luís
Inácio Lucena Adams - até então pule de dez na próxima indicação da presidente
para o Supremo Tribunal Federal.
Na opinião do sociólogo Bernardo
Sorj, o novo castelo de cartas que desmorona no primeiro escalão do governo
federal revela que o País ainda está longe de atingir a distinção republicana
entre público e privado. E se destaca no rol da corrupção geral das nações por
sua ocorrência “de forma quase sistemática”. Professor aposentado da UFRJ e
diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, no Rio - que atua na
consolidação de democracias com justiça social na América Latina -, Sorj
acredita que, embora o Brasil moderno e urbanizado tenha aprendido a respeitar
a lei num sentido abstrato, ainda não é capaz de praticá-la com inteireza no
dia a dia. “O desprezo pelo público, certamente em escala muito maior nas
esferas do poder, está na prática cotidiana de praticamente todo cidadão”,
afirma ele na entrevista a seguir. Uma distorção do desenvolvimento nacional
que batizou de “individualismo transgressor”.
Segundo o sociólogo, para mudar “toda
uma sociabilidade de desrespeito à norma, que começa lá embaixo e termina lá em
cima”, decisões como a do Supremo Tribunal Federal no julgamento do mensalão
são positivas. Mas o País terá que apostar na educação de seus cidadãos e se
apoiar em reformas políticas e administrativas. “A tragédia brasileira é que o
Estado passou a estar a serviço do sistema político, e temos que separá-los
totalmente.”
O escândalo revelado pela Operação
Porto Seguro é um caso clássico de confusão entre público e privado?
É um caso extremo, vergonhoso,
triste. E a pergunta que deveria ser feita é: como chegamos a esse tipo de
situação? Casos de condutas erradas por parte de funcionários públicos existem
em qualquer parte do mundo. A diferença é que no Brasil isso ocorre de forma
quase sistemática. E mostra que precisamos enfrentar a situação minimizando as
possibilidades desse tipo de conduta. É um processo lento, gradual, que começa
na vida familiar, passa pela escola e pelo respeito ao outro e ao espaço
público, que são premissas básicas da democracia.
A incidência de casos de corrupção no
Estado brasileiro aumentou ou diminuiu?
Se pensarmos em termos de longo
prazo, obviamente a corrupção do Estado - e também das empresas em suas
relações carnais com ele - aumentou muito. Mas aumentou na medida em que o
Estado tem maior capacidade fiscal e porcentagem do PIB - há 50 anos o Estado
tinha só 10% do PIB (em 2005, já passava de 36%, segundo o Ipea). Ao mesmo
tempo, naquela época a corrupção estava em outro lugar. Era local, o coronel
fazia o que queria em sua fazenda e a ilegalidade rondava cada pedaço de terra
pelo Brasil. O cenário mudou muito com a urbanização do País. E gerou o que
chamo de “individualismo transgressor”.
O que é ‘individualismo
transgressor’?
Por um lado, nossa sociedade se
modernizou. Temos indivíduos mais conscientes de seus direitos, com mais
autonomia, mais acesso à informação, que participam de alguma forma da
sociedade de consumo e recebem, em maior ou menor grau, benefícios de políticas
públicas. Ao mesmo tempo, esse indivíduo moderno brasileiro é transgressor,
pois continua mantendo uma cultura política que não respeita a separação entre
o público e o privado. Ele não reconhece a universalidade das regras quando
essas se aplicam a ele próprio, se utiliza das benesses do poder, do
favoritismo e do nepotismo, desconhece nas ações práticas a lei e o próprio
espaço público.
Então não é um problema apenas da
classe política...
Exato. Vou dar um exemplo que pode
parecer ingênuo. Quando eu dava aula, meus alunos ficavam falando sobre a
corrupção no Estado. Aí eu dizia: “Muito bem, mas o que é a corrupção? É a
apropriação indevida de recursos públicos. E a maioria de vocês nunca vem à
aula. Vocês custam para o Estado R$ 15 mil, 20 mil ao ano, no mínimo. E jogam
pela janela. Esse desprezo pelo público, certamente em escala muito maior nas
esferas do poder, está na prática cotidiana de praticamente todo cidadão,
quando não respeitamos o farol de trânsito, tentamos corromper um policial para
não sermos multados, em toda uma sociabilidade de desrespeito à norma, que
começa lá embaixo e termina lá em cima.
Mas é nas altas esferas do poder que
essa cultura traz piores consequências, não?
Qual a tragédia brasileira? É que o
Estado passou a estar a serviço do sistema político, e temos de separá-los
totalmente. Porque é um ciclo que se repete: o que acontece com os partidos de
oposição assim que chegam ao poder? Passam a considerar também que o Estado é
um bem que lhes pertence e o utilizam em sua ação privada. A tragédia vale para
todos os partidos.
É possível mudar essa cultura?
Não se muda nada por milagre. Cada
passo é um passo. A decisão do Supremo Tribunal Federal de punir políticos que
têm posições de poder estabelecidas foi um passo importante. Temos que criar um
sistema de educação pública que introduza nas crianças valores cívicos. Passa
por um sistema econômico em que não mais exista um setor informal que não paga
impostos nem responde às leis trabalhistas e do comércio. Passa por separar e
fazer o mais transparente possível a relação entre o Estado e as empresas, de
forma que todos os anéis de corrupção sejam cortados. E por diminuir
drasticamente os cargos de confiança. Todo o sistema do serviço público tem de
estar, majoritariamente, nas mãos de funcionários de carreira, não de pessoas
que chegam de paraquedas por indicação política.
O PT está completando uma década no
poder federal, acompanhado por uma sucessão de escândalos. A que o sr. os
atribui? À cultura sindical do corporativismo? A uma certa ortodoxia de
esquerda que vê as instituições como moldáveis ao sabor do projeto político?
A questão não é entre esquerda ou
direita. Tivemos direita corrupta no Brasil e, no momento, essa esquerda também
mostra sinais amplos de corrupção. Nossa direita era elitista, mandonista,
tinha desprezo pelo povo e achava que o Estado lhe pertencia. Já as esquerdas
brasileira e latino-americana têm um problema de fundo. É acreditar que alguém,
por ser de esquerda em termos de declarações ideológicas, está acima da lei e
representa, por definição, o bem. Ou que, sendo de esquerda, representa os
interesses do povo e, portanto, pode fazer o que bem lhe parece. O que implica
um profundo desprezo pelas instituições democráticas. O PT carrega essa
ideologia, de pensar que, pelo simples fato de ser PT e se autodeclarar
representante do povo, está acima das instituições da norma democrática, pode
fazer o que quiser e o Estado lhe pertence. Parte da nossa esquerda ainda não
entendeu que tem que diferenciar governo e Estado. O último é um bem público
que pertence aos cidadãos e não a um grupo específico, seja povo ou elite. Não
temos uma situação tão grave como na Venezuela, que beira o autoritarismo. Mas
o problema ocorre também no Brasil, embora haja setores dentro da esquerda que
procuram lutar contra ele.
Quando o presidente do PT, Rui
Falcão, afirma que a oposição no País não é feita por DEM ou PSDB, mas pela
mídia e o Poder Judiciário, trata-se de um ataque às instituições?
Alguns porta-vozes do PT têm feito
declarações profundamente antidemocráticas. Primeiro tentando estigmatizar a
imprensa e os meios de comunicação por fazer oposição ao governo - quando o
papel da imprensa é esse mesmo, seja o governo de esquerda ou de direita. Essa
dificuldade de aceitar críticas vem da crença de se acharem representantes do
povo e, portanto, do bem. É o que eu chamo de religião secularizada.
Antigamente tudo o que a Igreja fazia era, por definição, pelo bem e pela
salvação da alma. Em nome disso, fez até a Inquisição, torturou e matou. A
esquerda se considera a salvação do povo e, em nome disso, está acima da lei, o
que é uma profunda incompreensão da democracia. Sobre o Judiciário, acho interessante:
o PT poderia ter festejado o fato de que foi um relator negro, de origem pobre,
que teve a coragem de enfrentar políticos que inclusive o indicaram. O partido
poderia ter transformado a conduta do ministro Barbosa em um elemento de
autocelebração. Mas, em lugar disso, demonizam o relator e um Supremo
majoritariamente indicado por Lula e Dilma.
E a atuação de Dilma diante dos
escândalos, tem sido satisfatória?
Primeiro, não podemos mistificar o
poder da presidente Dilma: ela depende de uma maioria para governar e, num país
como o Brasil, onde no Congresso prevalecem interesses pequenos e pessoais dos
políticos, é preciso fazer acordos que nem sempre agradam. Apesar disso, embora
ainda seja cedo para avaliar seu governo, creio que a presidente tem procurado
enfrentar os problemas de corrupção e utilização privada da máquina pública
dentro dos limites que lhe dá sua base de poder. O que ela ainda não enfrentou
são as reformas necessárias para a gente realmente modificar o quadro
estrutural.
Quais seriam essas reformas?
Uma reforma política, a diminuição
radical do número de cargos de confiança e a utilização de técnicos de alta
qualidade para dirigir as empresas públicas e agências de regulação. Precisamos
separar a máquina de Estado dos interesses políticos. No caso da reforma
política, o elemento central é fortalecer o poder dos partidos em contraposição
ao poder dos políticos que exercem mandatos. O mandato tem de estar mais
associado ao partido, sua bancada e seu programa. Um segundo ponto é que pelo menos
parte dos mandatos sejam distritais, de forma que as pessoas possam acompanhar
mais de perto a atuação desses políticos. Em terceiro lugar, como já disse,
precisamos de mais leis que punam ações ilegais de qualquer funcionário público
- e aqui seria preciso também fazer uma mudança nos chamados fundos eleitorais,
que hoje são uma caixa-preta em nome da qual praticamente tudo é permitido.
O que se pode fazer em relação ao
financiamento eleitoral?
É preciso mais rigor na punição. Só
para dar um exemplo, na Alemanha o ex-chanceler Helmut Kohl, pego num escândalo
de uso indevido de fundos eleitorais, teve de renunciar e sair da vida pública.
E lembre que Kohl foi possivelmente um dos grandes estadistas alemães do
século, dirigiu a reunificação do país. A questão não é entre financiamento
público ou privado, mas de transparência no uso dos recursos.
A PF e o Ministério Público são
instituições que têm se fortalecido, em sua opinião?
No caso do MP, acho vergonhosos os
intentos de diminuir seu poder. O MP é um dos grandes avanços da Constituição
de 1988 e se alguma coisa tem de ser feita é no sentido de seu fortalecimento.
Ele é o único instrumento que a cidadania tem para enfrentar o poder
estabelecido, pois a gente não tem, como em outros países, a opção de “ligar
para o meu representante no Congresso para que tome providências”. Em relação à
Polícia Federal, muitas das últimas operações têm sido exemplares. Mas a
verdade é que a PF ainda é muito fraca em termos de recursos humanos e
materiais, levando-se em conta a enormidade de suas atribuições, desde a
fiscalização de fronteiras até o combate ao crime organizado e à corrupção.
E atores da sociedade civil, como as
ONGs, podem suprir deficiências do Estado?
Uma das avaliações erradas que
fizemos em determinado momento foi pensar que as ONGs poderiam substituir parte
das funções do sistema político. Elas não conseguem. Por duas razões: a
primeira é que o mandato delas é fundamentalmente de denúncia e de disseminação
de valores. Elas não entram nas questões estritamente de governo. A segunda
razão é que parte dessas ONGs foram cooptadas pelo sistema político. Um tempo
atrás, nas eleições anteriores na Câmara Municipal do Rio, um quarto dos
políticos eleitos tinha suas próprias ONGs. Ou seja, a ONG muitas vezes é utilizada
para desviar recursos públicos ou é cooptada com recursos públicos para
defender o governo. O sistema político não pode ser substituído, ele tem que
ser melhorado e fortalecido.
O sr. escreveu certa vez que hoje o
mundo da política ‘se bifurca entre um Estado que administra sem utopias, e
utopias que se afastam dos problemas de administração do Estado’. Podemos sair
dessa encruzilhada?
É uma encruzilhada universal. O fim
das grandes utopias revolucionárias teve um elemento positivo: acabou com a ideia
de que um grupo representa o bem de uma sociedade e pode impor à maioria a sua
vontade. Na medida em que elas acabaram, no entanto, isso também afetou a
conduta das pessoas associadas ao sistema político. Se antes havia muitas
pessoas generosas, ao menos nas intenções, que entravam na política em nome de
ideias, hoje as ideias ocupam um papel cada vez menos relevante. Passou-se a
atrair para a política pessoas, no melhor dos casos, ambiciosas - para as quais
os ideais de sociedade são menores. Já as que tinham grandes ideais para a
sociedade saíram dos partidos políticos para se localizarem em movimentos
sociais, ONGs de direitos humanos, ONGs que se dedicam ao meio ambiente, e
assim por diante. O resultado é que a maioria das pessoas que tem ideais e procura
defender uma visão mais moral da vida política não está no sistema político -
visto como um ambiente que perdeu suas motivações mais altas. Aí está a
bifurcação: as pessoas que querem mudar sentem que não há lugar para elas no
sistema político, no qual predominam a negociação e os interesses. Já na
sociedade civil elas podem manter a pureza de suas crenças, mas com influência
quase nula na vida política. Essa separação entre uma militância de sociedade
civil com ideais, mas sem poder político, e um poder político que está perdendo
seus ideais termina se expressando em fenômenos como temos visto no PT hoje.
Fonte:
Aliás / O Estado de S. Paulo
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