Vacca, Giuseppe. Vida e pensamento de Antonio Gramsci (1926-1937). Prefácio de Maria Alice Rezende de Carvalho. Brasília/ Rio de Janeiro: Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2012. 507p.
A obra de Antonio Gramsci, mais de três quartos de século após sua morte, continua a inspirar e exercer influência em intelectuais e políticos, movimentos e partidos, instituições e organizações dos mais diversos tipos e concepções. Seu legado teórico-político — desde a “edição temática” dos anos cinquenta, organizada por Palmiro Togliatti e Felice Platone, à “edição crítica” dos Cadernos (1975), realizada por Valentino Gerratana — foi e prosseguiu sendo avaliado e recepcionado por vertentes político-ideológicas as mais variadas (comunistas, socialistas e até liberais-democratas). Traduzida em muitas línguas e com inúmeras edições, a fortuna crítico-analítica de sua obra é constituída, provavelmente, de alguns milhares de estudos, ensaios, artigos, livros, teses acadêmicas etc., em todo o mundo. É reconhecidamente um dos maiores e mais importantes teóricos da política dos séculos XX e XXI. Pode-se dizer, sem exageros, que Gramsci é, indubitavelmente, um clássico da teoria política. Sua obra excede em muito o momento em que foi produzida e insiste em conservar-se admiravelmente contemporânea — “é um autor que vive além do próprio tempo e também fala aos pósteros” (p. 38).
O reconhecimento e a apropriação de seu patrimônio teórico-político por múltiplas correntes e tendências (ou facções delas), cada qual à sua maneira — em alguns casos de forma instrumental ou segundo conveniências momentâneas —, na intervenção política ou nos embates ideológicos não são, porém, um fato sem implicações e consequências. Isso reflete-se nas leituras e interpretações que têm sido feitas dos escritos de Gramsci, gerando, inclusive, um embate histórico-teórico em torno de sua herança. E é nesta controvérsia que se inscreve o novo livro de Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci (1926-1937).
Fruto de décadas de investigação, Giuseppe Vacca realiza uma releitura da obra de Antonio Gramsci, especialmente dos Cadernos do cárcere, seguindo a melhor tradição do Partido Comunista Italiano — PCI, expressa em Palmiro Togliatti e Enrico Berlinguer. Faz uma exaustiva análise dos anos em que Gramsci esteve nos cárceres fascistas (1926, p. 37), utilizando-se da correspondência (em parte inédita) que manteve com a mulher (Giulia), a cunhada (Tania Schucht) e Piero Sraffa; efetua um minucioso trabalho de reconstituição histórica, cotejando a correspondência com as notas do cárcere; entende que “o epistolário é uma chave privilegiada de acesso à leitura dos Cadernos: em alguns casos, sintetiza seu conteúdo, em outros, acompanha sua evolução ou antecipa as linhas de pesquisa” (p. 34-5). Concomitante a isso, vale-se de depoimentos de contemporâneos e documentos da Internacional Comunista — IC, checando as várias fontes com a bibliografia e inserindo-os no complexo período da “grande guerra civil europeia” (1914-1945). Observe-se que Vacca não analisa os escritos de Gramsci anteriores à prisão, com poucas exceções, como é o caso das “Teses de Lyon” e do famoso texto “Alguns temas da questão meridional”, ambos de 1926.
A biografia reconstruída por Vacca faz convergir os dramas pessoais/íntimos com as reflexões políticas; ou melhor, realiza uma releitura dos Cadernos juntamente com “a reconstrução das vicissitudes políticas e humanas de Gramsci na prisão”, unindo “teoria e biografia” (p. 29) — é, de fato, uma biografia, a um só tempo, intelectual, política e pessoal. Há, no livro, alguns capítulos exemplares desse recurso totalizante utilizado por Vacca. Sobretudo os capítulos X e XI, nos quais analisa as cartas para a mulher sobre a psicanálise e a questão hebraica, envolvendo temas e indagações do universo familiar que o angustiavam. Imbricado com as inquietudes dos problemas familiares (em especial da mulher e dos filhos), a biografia aborda de maneira sóbria a condição humana do prisioneiro do fascismo, seus incômodos com a saúde precarizada pela difícil situação das prisões, além de afligido pelas suspeitas em relação ao Partido e sua direção (em especial Togliatti), que desconfiava terem prejudicado sua libertação. Aliás, sobre isso Vacca faz uma longa e documentada reconstituição das fracassadas tentativas de libertação de Gramsci e conclui:
Togliatti não precisava sabotar tentativas de libertação que, na realidade, jamais foram realizadas seriamente pelo único ator que poderia empreendê-las, vale dizer, o governo soviético. Empregando uma linguagem mais “familiar”, Mussolini já cuidava de manter Gramsci no cárcere, e sua libertação jamais configurou objeto de interesse estatal soviético (p. 494).
Não obstante todos os infortúnios do prisioneiro, Gramsci em momento algum deixou de proceder como dirigente político do PCI — por meio de uma linguagem cifrada fazia chegar a Togliatti, por meio de Sraffa, suas avaliações sobre a situação política italiana e internacional e, claro, suas discordâncias com as orientações da IC e do PCI. Gramsci se oporia frontalmente à tese da IC do “social-fascismo”, segundo a qual a social-democracia era caracterizada como inimiga principal e identificada com o fascismo. Isso implicava que o PCI deveria abandonar a política de frente única e “adequar-se a nova estratégia do Komintern, que considerava iminente uma nova onda revolucionária e indicava como objetivo imediato a insurreição” (p. 142). É contra essa orientação, da “tática de classe contra classe” e da “estratégia insurrecional” (1929-34) da IC que Gramsci iria se opor e que o levaria a repensar e reelaborar a teoria política do socialismo ou a “filosofia da práxis”.
Para Vacca, “a discordância de Gramsci estava condensada na proposta política de Constituinte” (p. 197). A palavra de ordem Constituinte implicava não só o descarte da “estratégia da revolução proletária”, mas também ia além da tática da frente única. Ela seria um meio — não um fim — para a instauração da democracia; “é concebida como certidão de nascimento da nação democrática” (p. 246). Corresponderia “ao objetivo de refundar as bases da vida nacional de modo reformista” (p. 244). Isso pressupunha superar a noção de revolução permanente — originária do Manifesto do Partido Comunista em 1848 e bem sucedida na Rússia de 1917 — de transformação da revolução democrática em revolução proletária; ou seja, a luta pela democracia não podia ser pensada como uma fase de transição para o socialismo. E vai além ao afirmar que a proposta política de Constituinte de Gramsci só pode ser entendida no interior do “sistema teórico dos Cadernos (p. 207) e que o ponto de partida para sua compreensão é a análise do fascismo.
O fascismo, para Gramsci, seria uma modalidade de revolução passiva — e mesmo desdobramento histórico do Risorgimento — que estaria procurando efetuar, dentro das condições do atraso e no contexto da crise, a modernização e/ou americanização da Itália. Para tanto, conferia ao Estado o papel de agente primordial de transformação e conservação concomitantemente, que a classe dominante ou qualquer força política seria incapaz de executar. Ou seja: o fascismo como agente europeu da “revolução passiva” que se segue à derrota da revolução proletária, mas também como variante italiana daquele processo de adaptação da Europa ao “americanismo”, que, em resposta à crise de 1929, parece destinado a impor-se também no velho continente (p. 208).
Com esse entendimento, ressalta G. Vacca, da reestruturação do capitalismo a partir dos Estados Unidos e seu potencial de universalização, Gramsci considera ser necessário repensar a ação política e os modos e formas de conceber as transformações sociopolíticas e impulsioná-las. Tornara-se premente a superação dos paradigmas da revolução de Outubro de 1917 — derivados do modelo francês de julho de 1789 —, da revolução como ruptura súbita e convulsiva, como assalto ao poder (Estado) e sua instrumentalização para operar mudanças “desde cima”, por meios e modos ditatoriais.
Nas novas condições do desenvolvimento do capitalismo e com o “Estado ampliado”, segundo Gramsci, a passagem da guerra de movimento para a guerra de posição seria a questão fundamental da teoria política do pós-Primeira Guerra Mundial. E “o objeto da guerra de posição é a obtenção da hegemonia política antes da chegada ao poder; seu teatro é a sociedade civil, e o epicentro, a luta política nacional” (p. 213). Vacca nota também que Gramsci vai superar a noção de hegemonia do proletariado e elaborar a de hegemonia política e que essa só se constrói na competição permanente pela direção política. Assim, o “horizonte dos Cadernos não é mais a ‘hegemonia do proletariado’, mas a teoria da política como luta pela hegemonia, que pressupõe uma revisão geral do marxismo em termos de filosofia da práxis” (p. 89). Nesse sentido, revolução passiva, guerra de posição, hegemonia, Estado ampliado não podem ser dissociados — “o conceito de guerra de posição conjuga-se com o de revolução passiva e, juntos, articulam o dispositivo analítico da teoria da hegemonia” (p. 207).
Por conseguinte, ainda segundo Vacca, as asserções gramscinianas superariam o velho paradigma da revolução permanente e a fórmula terceiro-internacionalista, e lançariam os fundamentos da política dos comunistas italianos no pós-guerra. Segundo elas, “a luta política é a luta pela hegemonia” e o âmbito “no qual esta pode se explicitar como luta pela hegemonia é o terreno de um Estado democrático que não antecipa finalisticamente o advento da ‘ditadura do proletariado’” (p. 246).
Da leitura que Giuseppe Vacca faz das formulações de Gramsci, é possível sintetizá-las na sentença, segundo a qual seu projeto de hegemonia está expresso em uma política para a democracia na perspectiva do socialismo. Uma política capaz de efetivar transformações que garantam a realização do ser social em condições de equidade e democracia — ampliação das liberdades, socialização da política, expansão dos direitos de cidadania, publicização do Estado, criação de mecanismos e pressupostos capazes de induzir a superação da clássica contradição entre o caráter social da produção e a apropriação privada do excedente gerado.
Não por acaso setores sociais os mais conservadores e empedernidos da(s) classe(s) dominantes — aferrados e habituados, secularmente, ao uso instrumental e patrimonial do poder — temerem tanto o campo democrático como espaço antagônico e de disputa da hegemonia. Exemplar desse pavor foi expresso, recentemente no Brasil, por uma importante representante do tradicionalismo antidemocrático, a presidente da Confederação Nacional da Agricultura, Senadora Kátia Abreu (PMDB-TO) ao afirmar que estava em andamento no país uma revolução comunista tendo por base a teoria política de Gramsci. Diz que o dirigente comunista italiano “ensinava que o teatro de operações da revolução comunista não era o campo de batalha, mas o ambiente cultural” e, mais, diz que Gramsci insistia “que o novo homem, anunciado por Marx, emergiria não do terror revolucionário, mas da transformação das mentes” (Folha de S. Paulo, 16/03/2013, p. A3).
É óbvio que há uma evidente exorbitância e uma certa dose de rudeza nos enunciados dessa senhora. Também é compreensível esse tipo de postura em se tratando, sobretudo, de uma representante das classes dominantes tradicionais que temem projetos de transformação de natureza democrática que lhes subtraiam poder de mando e que criem possibilidades de redenção sociopolítica dos subalternos. Mas, por outro lado, atesta a extraordinária atualidade do legado teórico-histórico de Antonio Gramsci, agora reposto com muita propriedade e fundamento no livro de Giuseppe Vacca.
José Antonio Segatto é Professor Titular do Departamento de Sociologia da FCL/UNESP/CAr.
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.