O grito de guerra amplificou-se ontem com a festa do governo pelos 10 anos do Bolsa Família. E o tom dos discursos foi de desforra contra todos aqueles que atacaram o programa nos primeiro tempos, chamando-o, inclusive, de bolsa esmola. Quem tem memória sabe que houve mesmo uma estigmatização para desacreditá-lo. Nas falas de Lula e Dilma, sobrou para a imprensa, adversários políticos e cientistas sociais. Entende-se a mágoa, mas também a aposta de um governo com magros resultados econômicos no indiscutível saldo social. Um outro discurso também parece estar sendo gestado para deixar em segundo plano o debate econômico: “Temos que debater a política. A campanha não pode ficar só no economês”, disse Lula anteontem no almoço com senadores.
A oposição já entendeu que, lá adiante, PT, Dilma e Lula denunciarão o risco de o programa ser extinto ou reduzido por outros governos. No segundo turno de 2006, o que ajudou Lula a virar o jogo foi uma feroz advertência sobre a volta das privatizações tucanas se Alckmin ganhasse. Mas agora, depois do leilão de Libra, vai aposentar o tema. O presidenciável e presidente do PSDB, Aécio Neves, reagiu com a proposta de incluir o Bolsa Família na Lei Orgânica da Assistência Social, a Loas, “para acabar de uma vez por todas com a utilização eleitoreira e criminosa do programa em determinados momentos”. Isso significaria, porém, perenizá-lo, embora diga que ele “hoje é necessário, mas deve ser transitório”. A Loas banca os benefícios de prestação continuada (BPC), como o salário-mínimo vitalício para idosos e deficientes sem renda. Com a alta exclusão previdenciária, a Loas um dia talvez nem mais possa pagar o BPC a tantos idosos sem aposentadoria. Se o que o governo quer é colocar o tema no centro da agenda, a oposição está ajudando.
É verdade que hoje, passados os tempos críticos, é fácil defender o Bolsa Família, como disse a ministra Tereza Campello. Há estudos e estatísticas — que ela fez jorrar aos borbotões — comprovando sua eficácia do programa que alcança 50 milhões de pessoas, transferindo em média R$ 152 a 13,8 milhões de famílias a um custo anual de R$ 24 bilhões. Não faltou sequer, na festa, a presença de uma autoridade estrangeira: Errol Frank, presidente da Associação Internacional de Seguridade Social, a ISSA, que há 15 dias concedeu ao programa o seu grande prêmio, algo como um Nobel das políticas sociais. Discursando em inglês, ele enalteceu a contribuição do programa para a redução da desigualdade brasileira e a inspiração para outros países. Não faltaram também quatro mulheres do povo, que deixaram de receber a Bolsa depois que encontraram a famosa porta de saída em cursos de profissionalização. Pelo visto, foram garimpadas com peneira fina.
Os resultados e o reconhecimento fazem reféns os candidatos de oposição. Eduardo Campos defende sua continuidade (com mais educação, mais isso e aquilo), e Aécio Neves reivindica o DNA tucano das atual rede de proteção social, tecida inicialmente no governo FHC. Dilma tratou ontem de refutá-lo: “Mudamos não só a política (social), mas a forma de fazer a política. Passamos a fazer transferência de renda direta, bem na veia dos mais pobres, varrendo as políticas clientelistas centenárias”. Para ela, o cartão magnético suprimiu o assistencialismo anterior, que aparecia perto das eleições. Mas foi Lula o mais incisivo na “revanche verbal”, lendo manchetes e citando artigos contra o programa, quando começou a ser implantado, em seu governo. Tudo na linha “Lula fez, Dilma manteve e precisa ser reeleita para manter”.
Esse discurso pega. Hoje, nenhum governo conseguiria acabar com o programa. Bem mais complicado será impor à campanha o “debate da política”, bandeira que a dupla Campos-Marina levantou primeiro, embora sem dizer exatamente como funcionaria a tal “nova política” dentro do “velho sistema”. Lula prega a reforma política, mas não explica como é que um Congresso em que o governo tem ampla maioria sepultou todas as propostas, nos 10 anos de PT no poder, inclusive o plebiscito proposto por Dilma.
Biografias: palavra de além-mar
Não vi recuo, apenas maior clareza, no vídeo dos artistas do Procure Saber sobre o que aspiram em relação às biografias. Essencialmente, preservar o recôndito, o íntimo, em alguns casos a dor.
A propósito, uma palavra de longe. O escritor e jornalista português Miguel Sousa Tavares, apaixonado pelo Brasil, seu povo e sua cultura, acompanha o debate brasileiro. Em entrevista que o Correio publica hoje no caderno Diversão & Arte, sobre seu novo romance, ele falou também sobre o tema. Como ele frequenta agora mais o noticiário político que o cultural, trouxemos esta resposta para a coluna. Diz ele: “Tenho seguido a polêmica, mas, como sou também advogado, precisaria conhecer melhor a lei civil brasileira. Não é o caso. Mas a questão é transnacional e, a meu ver, não é tão simples de se resolver.
Compreendo e sou sensível aos problemas que tal impedimento legal coloca para quem escreve biografias não autorizadas — que são as únicas interessantes, embora não necessariamente confiáveis. Mas também compreendo, até por experiência própria, o valor da privacidade. A Constituição portuguesa, por exemplo, estabelece que ‘todos têm direito à intimidade da sua vida privada’. Diz ‘todos’. Não diz ‘todos, menos as figuras públicas’. Nenhuma lei o diz, porque isso seria discriminatório, violaria o princípio da igualdade perante a lei. A menos que se estabeleça o oposto: que ninguém tem direito à privacidade. É verdade que caminhamos para sociedades assim, com os Facebooks, Instagrams e ainda as escutas dos americanos e de outros. Uma coisa é a violação da privacidade à revelia da lei e, no caso das mídias sociais, por decisão dos próprios. Mas se alguém quer preservar sua privacidade, que direito têm outros de arrombá-la? Só porque o público tem curiosidade de saber, parece-me pouco. Não se trata de um direito natural”.
Fonte: Correio Braziliense
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