• Autor, professor e filósofo aposta nos protestos de junho como estopim do ciclo de democratização do país
Leticia Fernandes – O Globo
RIO - Autor do livro ‘Choque de democracia — Razões da revolta’, sobre os protestos de 2013, o filósofo e professor da Unicamp Marcos Nobre vê as manifestações de junho como a abertura de um ciclo de democratização do país. No livro escrito em apenas dez dias, ainda durante a ebulição de junho do ano passado, Marcos Nobre procurou explicar a alta temperatura que surpreendeu as ruas de todo o país. O filósofo acredita que o principal legado das manifestações daquele mês foi a retomada do poder do Estado pela sociedade. Passado um ano, os efeitos chegaram até aos espaços institucionais mais tradicionais: os sindicatos.
As manifestações desse ano terão a mesma força?
A ideia de que vai se repetir a situação de junho de 2013 em termos de quantidade e alcance tem probabilidade muito baixa. Junho abriu um ciclo de democratização do país, e os efeitos serão sentidos durante muitos anos na forma de protesto. Junho liberou uma enorme energia democrática, que vai se espalhando.
O que mudou com relação a junho do ano passado?
Uma das diferenças importantes é que vemos as bases sindicais se rebelarem contra a direção dos sindicatos. Aconteceu nas greves dos garis, dos motoristas e cobradores de ônibus, dos professores. Tem um discurso de junho que passa até para setores institucionais, como os sindicatos. A outra diferença é que existe articulação entre os movimentos, se faz uma espécie de coalizão nas ruas. Com diferentes focos e reivindicações, os movimentos sociais não são iguais aos da redemocratização, que se articulavam para tomar o poder. Esses novos não querem tomar o poder, são movimentos que falam da sociedade para a sociedade, e isso é muito novo. É a descoberta de que as instituições políticas não pairam no ar, o Estado não paira no ar.
Essa articulação entre grupos distintos pode deixar os atos sem foco?
Esse tipo de protesto tem foco, mas não está querendo tomar o poder. Há a descoberta de que as polícias dependem da legitimidade da base da sociedade para funcionar, e essa polícia não está à altura da democracia. Essa mudança de visão de que a democracia não está dirigida só para o Estado, mas para as pessoas, abriu uma enorme avenida de aprofundamento da democracia. Antes, não havia esse horizonte, e ele inclui a articulação de focos diferentes. No Rio, o grau de articulação ficou muito mais alto porque tem essa sequência Copa-Olimpíadas, que dá à cidade uma característica de emblema de junho. Agora, você tem um monte de brasas espalhadas, e essas brasas fazem um foguinho.
O que fez as pessoas saírem às ruas?
Não tinha unidade nas jornadas de junho, que é o bacana. Antes, na redemocratização, tinha essa unidade, objetivos comuns, e você não podia atrapalhar essa ideia: derrubar o Collor, Diretas Já... Isso mudou. Se não tem unidade, o que une as pessoas? O hífen. Se não tem o traço de união entre as pautas e os grupos, se põe um hífen entre eles. E esse traço de união é a rejeição do sistema político da forma como está funcionando e uma exigência de reforma radical. Olhando a diversidade de reivindicações, esse é o traço de união. Não é unidade, mas união. A violência policial foi um estopim importante para o alargamento das manifestações, porque ela simbolizava o último braço de blindagem contra a sociedade, representava um sistema político inalcançável. Houve um novo empoderamento das pessoas, e ficou claro em junho que o poder está na rua e, não, no palácio.
Elas vão voltar?
Acho que nunca deixaram de estar ali. O fato de a sociedade tolerar tantas manifestações é sinal de que ainda existe um colchão de junho sustentando esses protestos. O importante é que eles aconteçam, porque a energia ficou represada durante tempo demais.
Ainda há um descolamento muito grande entre a política e a sociedade?
Esse descompasso foi encenado nas ruas e mostra que quem está atrasado é o sistema político, não a sociedade. E ele vai ter que ser resolvido. A organização anterior do sistema político era das grandes maiorias. Essa maneira de funcionar blindou o sistema político contra a sociedade, e isso foi colocado em xeque nas ruas. E o resultado foi uma desorganização da política.
Os candidatos estarão atentos às ruas?
Não tem jeito de não estarem atentos. Junho significou uma coisa elementar do ponto de vista do sistema político: nós não vamos deixar o governo em paz, o sistema político não vai poder dormir tranquilamente. A sociedade nem sempre tem noção do poder que tem. Mas como fazer esse poder se transformar em algo palpável? Esse é outro aprendizado democrático que está em curso. No Rio, de um lado, o Estado está passando um trator em cima de pessoas e organizações; de outro, a sociedade tenta resistir. O Rio é onde as coisas se acirram mais e onde haverá uma das sucessões estaduais mais confusas. Aconteceu algo muito novo e leva-se um tempo para que a novidade se torne poder institucional. Junho foi uma coisa galopante, mas aquele entusiasmo e as transformações que ocorreram como resultado, como a suspensão do reajuste da tarifa naquele momento, são situações que não acontecem todo dia. E, agora que abrimos uma janela, queremos tudo para amanhã.
Essa revolta vai ter impacto nas urnas? Ou o brasileiro tem memória curta?
É possível que a insatisfação do protesto se traduza na forma de votos nulos ou em branco. Aí será uma rejeição ao sistema político, que não vem respondendo de forma positiva, organizada. Do outro lado, talvez se houver esse aumento de brancos e nulos, você não consiga uma alteração do sistema político. Estamos nessa situação: de um lado, uma enorme energia democrática liberada, um anseio por um ritmo mais rápido de democratização; do outro, um sistema político que não conseguiu se organizar. É um descompasso muito grande. As eleições são importantes, mas não são tudo. Se esse aprendizado acontecer, terá sido um enorme ganho.
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