- O Globo
Foi só um “esquenta”, organizado em uma semana. Os promotores dos atos pró-impeachment têm alegações razoáveis para o relativo fracasso das manifestações do 13 de dezembro, mas nenhuma delas ocultará a mensagem óbvia: as ruas já não são as de agosto, nem muito menos as de março. Há uma explicação para isso, que escapa aos argumentos de circunstância. O impeachment assumiu a forma de uma narrativa suja, incapaz de mobilizar multidões.
Março foi o mês do grande repúdio. Sob os impactos combinados do escândalo do “petrolão” e do estelionato eleitoral, as manifestações imensas concentravam a indignação nacional contra o governo Dilma Rousseff. O grito do impeachment era uma tradução possível, mas não a única, nem talvez a dominante, do sentimento das ruas. Protestava-se contra a captura do Estado por uma elite política e empresarial consagrada ao desvio sistemático de recursos públicos e identificava-se no lulopetismo a representação de um sistema de poder dedicado a iludir os cidadãos.
Agosto foi o mês de uma filtragem política inicial. O Vem pra Rua e o Movimento Brasil Livre, principais organizadores das manifestações, fincaram na praça a bandeira do impeachment, estabelecendo uma fronteira. Saíram às ruas, em protestos ainda muito grandes, mas menores que os anteriores, os mais entusiasmados aderentes do impeachment. Debandaram aqueles que, mesmo abominando o governo, nutriam dúvidas sobre o rumo político a seguir.
Dezembro é o mês da desmobilização. A bandeira do impeachment saiu das ruas quando foi empunhada por um setor da elite política: o PMDB de Michel Temer e Eduardo Cunha, o PSDB e o DEM. Na opinião pública, a questão do impeachment passou a ser entendida como uma guerra intestina entre máfias políticas em disputa pelos despojos do aparelho de Estado. Apesar dos esforços de tantos arautos, a transição de Dilma para Temer não é percebida como uma oportunidade de união nacional legítima, mas como um rearranjo por cima, ditado pelo oportunismo e empapado de cinismo.
De agosto a dezembro, a dinâmica política foi configurada pela denúncia tucana contra a presidente. O pedido de impeachment assinado por Miguel Reale Jr., Hélio Bicudo e Janaína Paschoal definiu um caminho. Sua argumentação, concentrada nas “pedaladas fiscais”, separou a decisão do impeachment da evolução da Lava-Jato, propiciando uma aliança entre os tucanos e lideranças do PMDB potencialmente envolvidas no escândalo do “petrolão”. O foco jurídico nas “pedaladas”, de difícil compreensão para a maioria da população, partidarizou ao extremo o desenlace, que passa a depender exclusivamente da ruptura definitiva entre os dois componentes nucleares do condomínio de poder. A “união nacional” transforma-se, assim, na mera reconfiguração das alianças no Congresso.
Na geometria, a menor distância entre dois pontos é uma reta. Na política, a opção pela reta equivale, com frequência, a uma abdicação. A estratégia tucana do impeachment implicou a renúncia à crítica de fundo do lulopetismo. Abrindo mão da oportunidade de iluminar as raízes do fracasso da política econômica do governo, o PSDB passou a votar sistematicamente contra o Planalto, mesmo quando isso significava enfraquecer os pilares do Plano Real, como no caso do fator previdenciário. Ao trocar o registro da Lava-Jato pelo das “pedaladas”, o PSDB desistiu de explicar que o capitalismo de Estado é um capitalismo de compadrio, distanciando-se do clamor popular pela instauração de uma administração pública honesta e transparente.
As ruas esvaziaram-se porque a mera substituição da aliança PT-PMDB por uma aliança PMDBPSDB atrai apenas os militantes de um antipetismo caricatural, estridente e primitivo. Se os tucanos tivessem optado por uma longa curva, assinariam a denúncia contra Eduardo Cunha apresentada pela Rede e pelo PSOL. Nessa hipótese, o “Fora Cunha!” ajudaria a evidenciar a natureza corrupta do bloco de poder lulopetista. Mas, escolhendo o caminho reto do impeachment, os tucanos enredaram-se num pacto tático com o diabo que contamina toda a narrativa política. Nesse cenário, o falso embate de Dilma contra Cunha, pedra de toque na estratégia de sobrevivência do governo, adquire alguma verossimilhança, confundindo a opinião pública.
O Planalto aposta suas fichas no erro básico do PSDB, que desvinculou o pedido de impeachment das investigações da Lava-Jato. Na hora das prisões de Delcídio Amaral e José Carlos Bumlai, peças cruciais para a decifração dos papéis desempenhados por Lula e Dilma no assalto à Petrobras, a presidente que comandou direta e indiretamente a estatal durante todos esses anos exibe-se como a personificação da honestidade. O discurso do governo, uma peça quase onírica, deveria ser objeto de bombardeio implacável. Mas, vergado sob o pesado fardo do pacto com Cunha e imerso na lógica de seu pedido de impeachment, os tucanos reduziram-se à condição de linha auxiliar numa dissidência palaciana e parlamentar conduzida pelo PMDB.
O Ibope revela que a rejeição ao governo continua na casa dos 70%. As projeções do PIB apontam para o túnel escuro de uma depressão similar à do início da década de 1930. A inflação já ultrapassou a barreira dos 10%, acima do índice de aprovação da presidente, enquanto a taxa de desemprego move-se rumo a esse patamar. Cunha e Renan Calheiros estão na mira da Lava-Jato, que fecha o cerco em torno de Lula. O governo Dilma implode em câmera lenta e talvez não sobreviva ao carnaval.
O impeachment inepto sustentado em argumentação jurídica precária pode, afinal, dar certo. Contudo, o rearranjo pelo alto, articulado nas sombras pelo PMDB de Michel Temer com o apoio dos tucanos, não solucionará a crise nacional. As ruas, esvaziadas e amortecidas, enviam uma mensagem que já não será ouvida. Elas dizem que, no fim das contas, nada substitui uma narrativa limpa.
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Demétrio Magnoli é sociólogo
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