quinta-feira, 6 de outubro de 2016

A política do gestor - Maria Cristina Fernandes

- Valor Econômico

• Sem reconhecer os conflitos, Doria custará a mediá-los

Se a definição em primeiro turno foi uma demonstração de força para o PSDB em São Paulo, a eleição de João Doria por um terço do eleitorado total da cidade exigirá mais das virtudes do político que rejeita que do gestor com as quais se vendeu na campanha.

Em suas primeiras entrevistas, Doria abandonou a largueza de seu discurso de vitória. Não se mostrou preocupado em cativar os dois terços que lhe foram alheios. Sem acenos conciliatórios, reforçou o discurso para seu terço e esbanjou voluntarismo como se candidato ainda fosse:

- "Não tenho medo de nada",

- "Sempre fui destemido",

- "Temer vai ter que pagar [dívida da União com São Paulo]"

- "Não existe fila na política, sou um exemplo disso",

- "A decisão [de retomar as velocidades anteriores nas marginais] está tomada, pode piar, pode reclamar, ela vai ser adotada"

-"Vou levar chocolates para Lula em Curitiba".

Ao comentar o resultado da eleição em São Paulo, Geraldo Alckmin deu uma pista para tamanha soberba: "São Paulo tem pressa". Não se deve duvidar que governador e prefeito eleito correm contra o tempo.

A eleição municipal projetou a liderança de Alckmin para 2018. Ainda que o senador Aécio Neves ganhe em Belo Horizonte no segundo turno, não pode lutar contra as evidências de que, desde 2014, já não tem o segundo maior colégio do país em suas mãos. A máquina que ainda está sob seu controle não custará a lhe escapar se Alckmin se provar mais viável.

Doria precisa mostrar resultados a tempo de dar ao governador, em 2018, uma vitrine que sua gestão falha em prover. Sua entrada em cena já ajuda, em grande parte, a estancar a sangria de expectativas em relação ao PSDB. Ainda que suas lideranças venham a cair na teia da Lava-Jato, o partido já - ou ainda - tem um nome a salvo da safra de escândalos a acenar para o futuro.

A origem e a estampa de gestor de Doria ainda servem para estancar a migração das expectativas empresariais do PSDB para o Novo. A terceirizar para os tucanos a tarefa, o partido, embrionário em suas chances, tem procurado se viabilizar como opção liberal ao mercado eleitoral.

Doria empurra o PSDB para fora da caixinha dos seus dilemas. O partido traz em sua denominação o desejo de seus fundadores de viabilizar um ideário social-democrata mas nunca teve base social para tanto. A vitória em São Paulo coloca o PSDB na rota de um conservadorismo mais capaz de podar suas ambiguidades.

Doria já foi comparado ao ex-primeiro ministro italiano Sílvio Berlusconi, que emergiu na operação "Mãos Limpas" como um egresso da iniciativa privada sem compromissos com o sistema partidário, e com o ex-prefeito Paulo Maluf, pela determinação em entregar a cidade à iniciativa privada.

O prefeito eleito prefere se comparar a Michel Bloomberg, o empresário das comunicações que administrou Nova York. Pretende seguir o exemplo do ex-prefeito americano e doar seu salário, num sinal de que a política é ofício para ricos, mas vai descumprir as recomendações da fundação que leva o nome do empresário e promove, no mundo inteiro, campanhas de redução de velocidade para diminuir mortes no trânsito.

É a comparação com os tucanos da geração que o antecede, no entanto, que melhor explica Doria. O prefeito eleito oferece a Alckmin o terceiro choque de capitalismo do partido. No primeiro, anunciado no legendário discurso de Mário Covas, em 1989, numa conjuntura pós-queda do muro de Berlim, quando a abertura no Brasil ainda engatinhava, o partido se colocou em defesa da livre iniciativa.

O partido apenas mostraria a que veio cinco anos depois quando Fernando Henrique Cardoso abriu a economia e empreendeu um amplo programa de privatizações. A avalanche petista dos anos subsequentes levaria os tucanos, incluindo o padrinho de Doria, a rejeitar o legado sob o boné do Banco do Brasil.

Foi a debacle petista que levou Alckmin a enxergar, na cartografia da política, que a inviabilidade eleitoral da esquerda abriria caminho para o terceiro choque, iniciado por Doria e a ser consolidado por sua candidatura em 2018.

A esquerda só costuma se viabilizar quando o eleitor desconfia que os adversários vão fazer o jogo das elites. A campanha do PSDB foi bem sucedida porque explorou Haddad como caudatário de um PT protagonista deste jogo. Com os petistas fora do campeonato por algumas rodadas, os tucanos já não terão no adversário o melhor amálgama para suas dissensões internas.

O Doria que acelera, no entanto, encontrará uma sociedade empoderada por pressões que tanto redirecionaram políticas públicas da gestão Fernando Haddad quanto empurraram a ex-presidente Dilma Rousseff para fora do cargo.

O freguês sempre tem razão, principalmente quando esta emerge das urnas. Doria foi eleito pelo enfado com o PT, terá que se valer mais da política do que de suas qualidades como gestor se as estatísticas de trânsito começarem a mostrar a elevação no número de mortes a partir da velocidade aumentada nas marginais paulistanas.

Seus atributos de gestor também podem ser insuficientes para lidar com os problemas decorrentes de sua proposta para diminuir as filas de exames. Ainda não se conhece a tabela pela qual os hospitais serão remunerados pelo uso de seus equipamentos em horário ocioso. É inevitável, no entanto, a exposição de levas de idosos e crianças da periferia, que se deslocarão de madrugada em busca de atendimento na rede privada de hospitais, às intempéries da segurança pública estadual.

Num debate promovido pelo Valor com os candidatos tucanos às prévias do partido, Doria expôs suas ideias para combater o déficit de creches na cidade. Como o maior problema é a ausência de terrenos, propôs aos supermercados a cessão de fatias dos estacionamentos em troca da fidelização das mães das crianças como clientes do estabelecimento. A proposta passou despercebida na luta fratricida das prévias mas é reveladora de sua opção por se reafirmar como gestor, a despeito de eleito por um partido para governar um caldeirão de problemas. Doria esvazia a política de sua função na mediação de interesses. No melhor das hipóteses, não os reconhece. Na pior, tem partido nesse conflito.

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