quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Sincronia entre o falar e o agir – Celso Lafer

- O Globo

Agir no espaço público tem tanto o componente de começar, guiar, quanto o de pôr em movimento e, como ensina Hannah Arendt, nenhuma outra atividade humana precisa tanto da palavra quanto a ação política. Dr. Ulysses sabia conjugar palavra e ação. Por isso foi capaz de mobilizar o agir conjunto gerador do poder de guiar e de pôr em movimento mudanças e transformações que tiveram um impacto decisivo na vida do país.

A política é “o ofício do perigo, do desafio, do surpreendente, da escalada e da queda”, na formulação do Dr. Ulysses. Quem assume o agir e o falar assume o risco de enfrentar essas situações. Precisa possuir a virtude forte da coragem, a capacidade, como apontava Cícero, de afrontar os perigos e enfrentar os trabalhos. Ele foi um homem de coragem, como revelou exemplarmente na condução da resistência civil ao regime militar. A coragem, lembrava, é “primeira virtude do estadista. Sem ela, todas as demais desaparecem na hora do perigo”.

“Quem só cuida de coisas pequenas torna-se pequeno”, disse, advertindo que a obra dos estadistas “não é forjada pelo varejo da rotina ou pela fisiologia do cotidiano”. Afirmava: “O estadista é o arquiteto da esperança.”

A primeira fase da sua ação de estadista, arquiteto da esperança da liberdade e da democracia em nosso país, foi a do timoneiro que pôs em movimento a grande frente de resistência civil ao regime militar, guiando o MDB e depois o PMDB.

A anticandidatura presidencial de 1973 “descongelou o medo que aviltava os que desejavam participar da política no Brasil”. A campanha das “Diretas já” foi a arma cívica voltada para “demolir o muro entre a nação e o Estado”.

Teve papel determinante no modo pelo qual o país alcançou pacificamente a redemocratização sem a ruptura da violência, “parteira do ódio, da cruel divisão entre vencidos e vencedores”.

Completou a sua obra arquitetônica presidindo a Constituinte, que institucionalizou o estado democrático de direito com a Constituição de 1988. Esta, imbuída de audácia inovadora, só alcançou o equilíbrio jurídico do movimento graças à sua autoridade na condução dos trabalhos.

Viveu weberianamente para a política e não da política. Política de quem tinha as mãos limpas, e sabia que “a corrupção é o cupim da República”. Teve o dom da autoridade, que não é “a competência funcional dada pelo cargo, mas é pessoal e caracteriza o homem público que se transforma num polo de atração”, “visto por todos e ouvido por todos”.

Reunia a rebeldia do inconformismo e a sabedoria política. Entendia os riscos inconsequentes da impaciência, não fazia “política com o fígado” e, como dizia, recorrendo à gíria futebolística, tinha a preocupação de “não perder no tapetão” o que se ganha no campo.

Exerceu a rebeldia inconformista com a sabedoria das “artes da política”, aprendida no PSD, o partido do equilíbrio político do sistema político de 1945 a 1964: “O PSD foi o grande laboratório político das soluções brasileiras.” “Nele não havia improvisação.”

O aprendizado de cidadania começou na atmosfera política da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, na qual se formou. Na tradição das Arcadas, associou à política o gosto pelas letras. Daí a origem da força de sua oratória.

Seu biógrafo Luiz Gutemberg registra que não teve “ghostwriters”.

Seu perfil está na qualidade pessoal de seus escritos, reveladores da sincronia arendtiana entre palavra e ação. Por isso, recorri a suas frases ao evocar aqui com saudades e admiração a sua memória, na sempre presente lembrança do privilégio que foi ter com ele convivido e muito aprendido.

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Celso Lafer Professor emérito da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992; 2001-2002) e do Desenvolvimento Indústria e Comércio (1999)

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