- O Estado de S.Paulo
Quando um órgão de imprensa toma posição, inúmeras e complicadas mediações interferem
A questão da corrupção entrou em nova fase nos últimos meses, em decorrência do impacto das delações da JBS e da explicitação das divergências entre Executivo e Judiciário, STF e PGR, juízes e procuradores, defensores e críticos da Lava Jato. A grande imprensa dividiu-se e abriu-se uma espécie de disputa entre os principais jornais e revistas. Alguns órgãos passaram a atacar o governo Temer e a figura do presidente, outros saíram em sua defesa, ainda que sem necessariamente deixarem de criticá-lo.
Rapidamente proliferaram explicações associando a atitude dos jornais e das redes de televisão aos interesses do mundo empresarial, que estaria tomando posição diante da crise política, do “reformismo” do governo Temer e da sua maior ou menor serventia para os planos do “grande capital”.
Sempre há “interesses materiais” na base dos conflitos sociais ou das posições políticas. Partidos de esquerda defendem os interesses dos trabalhadores, partidos liberais fazem o mesmo com os empresários, partidos de extrema direita tentam explorar interesses da “classe média”. Não são alinhamentos automáticos ou seguros, especialmente quando se lembra que há distinções poderosas entre as camadas burguesas, entre trabalhadores manuais e intelectuais, operários e prestadores de serviços, e assim por diante.
Cada fração de classe, em tese, busca se representar no plano político. Os partidos, por sua vez, vocalizam essa multidão de interesses. Mas, e quando o foco recai sobre jornais, revistas e redes de TV? Seriam eles meras extensões dos interesses dos donos das empresas ou do “capital”? Será que suas divergências devem ser entendidas por esse prisma?
Não há dados cabais que comprovem conexões do tipo. O que há, em profusão, são ilações, muitas vezes precipitadas.
Não é que os “interesses materiais” não tenham relevância. Em boa medida, tudo na vida passa por eles: todos são “interessados”, têm raízes na estrutura material e se agregam de algum modo em blocos particulares, ou classes sociais.
Tal ênfase, porém, não resolve tudo. Muitas vezes dificulta a compreensão dos problemas, sobrecarregando-os de uma “materialidade” excessiva.
Quando órgãos de imprensa tomam posição, não estão em jogo somente os interesses das classes de que fazem parte seus proprietários. Entram em cena outros aspectos, importantes e eventualmente decisivos.
Antes de tudo, há patrões e há jornalistas, e jornalistas não costumam ser ventríloquos dos patrões. Há a reportagem, os artigos de opinião, a cobertura cotidiana e os editoriais, que são autônomos entre si, por mais que exista uma “linha” costurando tudo.
Jornais e revistas são organismos político-financeiros. Tudo o que fazem passa por cálculos voltados para receita e faturamento. Mesmo os pequenos jornais, de partido ou puramente de opinião, precisam dar atenção a isso. Ou seja, precisam vender.
Os grandes órgãos de imprensa desempenham múltiplas funções. Praticam o “jornalismo integral”, que não só “pretende satisfazer todas as necessidades de seu público, mas também criar e desenvolver estas necessidades e, em certo sentido, gerar seu público e ampliar progressivamente sua área” (Gramsci). São, pois, de opinião, de informação e de entretenimento. Podem ser mais populares ou menos. Seguem regras de mercado, competem entre si por furos de reportagem e manchetes, com os quais almejam marcar posição e ampliar as tiragens.
São, também, agregados ideológicos e doutrinários, que seguem ideias filosóficas, princípios teóricos e escolas de pensamento, com os quais constroem um modo de ver o mundo.
Podem ser mais “governamentais”, mais “mercantis” ou mais “estatais”. Podem atacar governos para defender o Estado ou para fazer o jogo do mercado. Podem também ser mais coesos, ou menos, funcionando em maior ou menor medida como difusores de uma cultura homogênea. Os mais democráticos abrem espaços generosos para articulistas que pensam de modo diverso e para criações culturais de vanguarda, “subversivas”. Nada disso remete imediatamente a “interesses materiais”, que de certo modo permanecem ao largo, estáveis, pesando como antes.
Quando um jornal ataca ou defende um governo, um partido político ou uma ação policial, não é a voz do “interesse material” a soar com exclusividade. Inúmeras e complicadas mediações interferem.
Pode-se, por exemplo, fazer isso para defender a estabilidade institucional e a recuperação da economia. Ou para valorizar a convicção de que a corrupção necessita do respeito a certas cláusulas do Direito para ser enfrentada. Ou para exigir que todos os crimes sejam apurados com o devido rigor, doa a quem doer. Ou para proclamar aos quatro ventos que há exageros de conduta aqui e ali, que é necessário preservar a política e não jogar fora a criança com a água suja do banho. Pode-se radicalizar a tomada de posição por amor a um princípio, para ganhar mercado ou para agradar a um setor do governo, aos leitores fiéis ou ao mundo político.
Jornais também podem seguir a cartilha clássica, que reza que a função da imprensa é revelar fatos e fornecer leituras equilibradas a respeito deles. O que não impede que tomem posição. Nenhum órgão de imprensa, por exemplo, no Brasil de hoje precisa ser contra as políticas de Temer para atacá-lo. E eles não falam pelo “capital” quando se manifestam a favor da continuidade governamental.
Que os grandes órgãos de imprensa funcionam como “partidos políticos” é uma ideia óbvia. Formam opinião, educam, orientam. Fazem circular ideias, investigam e podem revelar fatos comprometedores. Têm, por isso, importante poder político, para o bem e para o mal.
Como a consideração desse quadro é complexa, privilegia-se o que parece mais evidente, os “interesses materiais”. A compreensão da realidade, com isso, fica solta no ar.
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* Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política e Coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp
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