Por Helena Celestino | Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Nascido em 1957, o cientista político alemão Michael Heinrich lê "O Capital" há 43 anos e não acha chato. "Li outras coisas também nesse período", diz em tom de brincadeira. Ele reconhece que Marx sozinho não dá conta de explicar a realidade hoje, mas acha engraçado o sucesso do francês Thomas Piketty, o célebre autor do "O Capitalismo do Século XXI". "Ele descobriu o que os marxistas sabiam", diz Heinrich, autor de nova biografia sobre Marx, a ser lançada no Brasil pela Boitempo em setembro.
Valor: Qual é o principal legado de Karl Marx e de "O Capital"?
Michael Heinrich: Ler "O Capital" como uma análise, e não como um previsão. Nos últimos cem anos, Marx foi lido por suas previsões sobre o colapso do capitalismo, sobre a revolução. Esse tipo de leitura perde o ponto crucial: Marx traz uma análise sobre a estrutura da sociedade capitalista, de suas contradições básicas e da impossibilidade de evitar crises. Marx realmente explica o mundo em que estamos vivendo, não faz uma previsão do que vai acontecer em 50 ou 70 anos. Para entender nossa situação concreta hoje, Marx sozinho não é suficiente, mas sem ele não entendemos nada.
Valor: O que há de novo na sua biografia de Marx?
Heinrich: Eu olho para a vida e obra de Marx. A maioria das outras biografias só foca na vida e cita as obras, não se ocupam do conteúdo das obras. Levo em conta também as muitas pessoas que circulavam em torno de [Friedrich] Engels e Marx - [Pierre-Joseph] Proudhon, [Ferdinand] Lassalle, anarquistas como [Mikhail] Bakunin. Também procurei mostrar que a vida de Marx não era uma linha reta do começo ao fim, teve muitos "turning points" acidentais ou premeditados. Por exemplo: após a derrota da revolução alemã, Marx foi para o exílio em Paris, e o governo russo forçou a sua expulsão. Com isso, ele teve de ir para Londres, sem falar inglês e sem possibilidade de trabalhar. Só que lá Marx achou no British Museum as fontes - livros, jornais, relatórios parlamentares - que precisava. Foi um acaso, mas se não acontecesse, talvez ele não escrevesse "O Capital".
Valor: O fracasso da União Soviética e as dificuldades em Cuba abalaram o marxismo?
Heinrich: A primeira questão é se a União Soviética teve um socialismo relacionado com as teorias de Marx. Sou muito cético sobre isso. Na União Soviética, no início, havia muitos conselhos de trabalhadores, algo próximo ao conceito de Marx do socialismo. Mas, muito rapidamente, esses conselhos perderam poder para um partido autoritário, que não tem nada a ver com o socialismo. O fracasso da União Soviética é o fracasso de um sistema autoritário e repressivo, montado em torno do Estado, que não tem nada a ver com o conceito de Marx sobre socialismo ou comunismo. Cuba é mais complicado. É um país muito pequeno, com recursos limitados e permanentemente ameaçado pelos Estados Unidos. Por isso, não teve o tempo de criar seu próprio modelo e acabou virando um regime autoritário também. Socialismo no sentido marxista continua uma utopia, é uma meta ainda não alcançada.
Valor: O senhor acredita na revolução?
Heinrich: Não acho que é uma questão de acreditar, talvez aconteça, mas é imprevisível. Acredito que o capitalismo é um sistema de exploração e de destruição do homem e da natureza. Para a sobrevivência da humanidade, é importante abandonar o capitalismo.
Valor: Onde o senhor vê essa possibilidade? Os países de capitalismo avançado vivem o contrário do que Marx previu: a extrema direita ganha força, os sindicatos se enfraquecem e as fronteiras são reforçadas.
Heinrich: Não é uma surpresa. Já vimos isso nos anos 30 na Europa, com os regimes fascistas na Alemanha e Itália. A situação na época era muito pior que hoje. Agora, temos o crescimento da extrema direita, mas também um grande movimento contra esses partidos. Acho que não existe chance, por enquanto, de uma extrema direita próxima ao fascismo tomar o poder.
Valor: Não acha que a burguesia teve uma capacidade de adaptação não prevista por Marx? E por outro lado, o proletariado incorporou os valores burgueses?
Heinrich: Sim, parte da classe trabalhadora incorporou os valores dos capitalistas. Mas eles serão demitidos na próxima crise, quando não tiverem mais utilidade. Os capitalistas têm o poder e, não importa o que cada um pensa, proletariado e burguesia serão postos numa situação de conflito a cada crise.
Valor: O que acha do olhar do economista francês Thomas Piketty sobre o capitalismo hoje?
Heinrich: Ele é engraçado, usou muitos números e os métodos da economia moderna para afirmar que temos desigualdade nos dias de hoje. O "refund" de Piketty não é uma surpresa para alguém que estuda Marx, é so para alguém que acredita na capacidade do capitalismo de criar desenvolvimento e riqueza. Concordo com ele que a desigualdade está crescendo, mas não me surpreendo.
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