- O Estado de S.Paulo
Nada ganhamos com a intolerância mútua. Estamos condenados a viver juntos neste país
Depois de termos vivido, desde 1994, as duas décadas mais estáveis e construtivas de nossa História, nos últimos cinco anos o Brasil tem vivido ao sabor de uma tempestade produzida pela confluência de cinco fatores: 1) um desenho institucional falho quanto ao financiamento das campanhas eleitorais; 2) um governo inepto quanto à política econômica; 3) órgãos de controle cada vez mais autônomos, no entanto imunes a controles eficazes; 4) um Judiciário com dificuldades crescentes de coordenação interna, sobretudo em sua Corte Suprema; e 5) um jornalismo incapaz de esboçar algum diagnóstico, propenso antes a tocar fogo no circo e a desestabilizar o sistema pela reverberação acrítica de qualquer denúncia.
No turbilhão de eventos que decorreu, uma das raras rotinas a, felizmente, resistirem é o calendário eleitoral. Assim, quatro anos depois da traumática reeleição de Dilma Rousseff, eis que voltamos ao reinício do jogo. Aqui não cabe um balanço detalhado desses anos, mas uma lição deve ser apontada, antes que seja tarde: um sistema político sob a vigência do Estado Democrático de Direito não se presta a “depurações”. Quando atores são ejetados, os que os substituem terão necessariamente chegado ali pelos mesmos procedimentos que haviam promovido os seus antecessores.
Não nos iludamos, o único atalho é a violência. Os golpes, as listas de inimigos públicos, os linchamentos – ou então, mais frequentemente, o assédio plebiscitário às instituições com vista à sua desconstrução, ilustrado agora pelo caso da Venezuela. Mas dois minutos de reflexão bastam para concluir que tais processos não podem diminuir a corrupção. Ao contrário, sob ameaça de violência o ambiente torna-se mais viciado e brutal, pois os atores se percebem em perigo e procuram se defender e atingir seus adversários, agora percebidos como inimigos.
O combate à corrupção só existe sob a democracia e o Estado de Direito. Sob a tirania, os amigos do tirano mandam, e o problema que se impõe é a vida ou morte de amigos e inimigos do regime, urgente demais para preocupações com a lisura dos procedimentos. Já sob a democracia, se todos passamos a ser iguais perante a lei, particularismos e privilégios até ali normais passam a ser vistos como corruptos.
Daí em diante, o combate a essas práticas dependerá de duas coisas. Uma é o progressivo aperfeiçoamento de rotinas e controles no plano administrativo. Este temos logrado de modo contínuo nos últimos 30 anos. Nem tanto, porém, no que toca aos controles a serem exercidos sobre os próprios controladores, requisito natural da previsibilidade de seus procedimentos e de sua subordinação à lei.
O segundo requisito de um combate sustentado à corrupção é o lento aprimoramento institucional no plano político. Impasses nessa arena podem durar gerações e é compreensível que pareçam exasperantes. Daí a tentação do voluntarismo, receptivo à intolerância e à violência. Processos políticos, porém, não se subordinam às intenções de seus demiurgos, e fantasias românticas sobre o recurso à violência são apenas isso, violência.
Que o sistema depois venha a se estabilizar em condições melhores, ou “depuradas”, é apenas uma remota esperança sem qualquer fundamento. Certas são apenas as valas repletas dos cadáveres que ficam pelo caminho.
Não soubemos viver a eleição de 2014. Os termos da disputa foram muito mais duros do que recomendaria o respeito ao rito, com uma desqualificação mútua entre os adversários que terminou por desmoralizar a própria eleição. Na sequência dos desastres que sobrevieram, será natural – até louvável – que apareçam clamores por governos de união nacional. Pois o mínimo que se espera agora é comedimento – que de fato tem sido maior este ano, por quase todas as candidaturas. União nacional, porém, não existe. Talvez em guerras, mas alguém pagará o preço do silenciamento de uma posição legítima, em nome dela. Nem justo será com os políticos esperarmos deles a união nacional. Eles têm direito às suas diferenças, de fato têm o dever de representá-las, já que essas são as nossas diferenças.
Resta, porém, a abertura ao compromisso. Sob o pluralismo necessariamente vigente num Estado Democrático de Direito, temos o dever de exigir de nossos representantes e governantes esta disposição mínima: a abertura ao compromisso público entre interesses legitimamente distintos, porém negociáveis dentro das balizas ditadas por eleições e pelo respeito aos mandatos conferidos pela soberania popular a cada eleito.
Para isso, porém, teremos de nos educar a nós mesmos. Ao público. E aos meios de comunicação. Há anos gritamos “pizza!” a cada vez que um político fala em acordo. No entanto, é precisamente essa a tarefa mais alta a que eles podem dedicar-se: a busca tenaz e a extenuante costura de acordos que nos permitam avançar nas agendas e desatar os impasses que nos paralisam. Apesar das mazelas de nosso sistema eleitoral, legislaturas podem entregar o que esperamos.
Frequentemente nos apelam por ajuda. E não temos sabido ajudar. Precisamos alargar-lhes os espaços para que façam o que têm de fazer: barganhas públicas em torno de compromissos mútuos quanto a suas plataformas legitimamente distintas. Conscientes de que elas são colegiados heterogêneos, nossa obrigação é entender e tomar posição quanto às disputas ali abrigadas, de modo a conferir-lhes inteligibilidade e recepção num debate público construtivo.
Nada ganhamos na intolerância mútua. Estamos condenados uns aos outros enquanto vivermos neste território. Sob o penoso legado da colônia e da escravidão, nossa esperança de uma vida melhor se apoia no desafio de vivermos nossas diferenças com a plena afirmação de nossa igualdade perante a lei.
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*Professor do Departamento de Ciência Política da UFMG
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