- O Estado de S. Paulo
A pregação bolsonariana soube explorar e manipular as vertentes que agitaram os rios subterrâneos da sociedade, extraindo disso o efeito político-eleitoral de que necessitava
A constatação já foi feita por todos os observadores. Resta agora buscar as razões.
Independente do que acontecer no segundo turno, o Brasil infletiu para a direita nas eleições de 2018. Não necessariamente para a extrema-direita, mas seguramente para um polo hostil à esquerda.
Foi um vendaval, que varreu o País de cima a baixo e empurrou o PT para seu nicho mais tradicional, o Nordeste, onde se manteve firme e forte, mas numa dimensão incômoda para um partido que se quer de esquerda. O eleitor petista da região não é ideológico, não é de esquerda nem tipicamente “democrático e racional”: orienta-se pelos hábitos do coração, pelo agradecimento. Lula é seu farol, não o PT. O resto do apoio vem por força da ação dos políticos tradicionais, dos grandes caciques e das famílias poderosas, com suas coligações.
Bolsonaro foi impulsionado por um tipo de conservadorismo curioso: parte de seus votos veio de pessoas interessadas em “mudar o que está aí”. Houve votos ideológicos, de extrema-direita, fanatizados, evidentemente, mas não há como saber em que proporção. Não foram votos “fascistas”. Parcela da votação obtida foi composta por pessoas que optaram por viver o paradoxo de mudar para experimentar uma conservação. O antipetismo foi o ingrediente que “racionalizou” o veto a práticas governamentais tidas como avessas ao bom governo, a repulsa ao descaso dos políticos e dos partidos.
Tratou-se de um conservadorismo de fundo moral, voltado para os costumes, tanto os que florescem na base da vida social (família, gênero, religiosidade, cultura) quanto os que se reproduzem no plano estatal, de onde se espalham pela sociedade. Ele se voltou, também, contra a prevalência e a retórica das pautas identitárias, vistas como produtoras de divisões e fraturas sociais.
A pregação bolsonariana valeu-se da efervescência de certas vertentes que agitaram os rios subterrâneos da sociedade. Soube perceber o efeito político-eleitoral delas e manipulou-as com habilidade.
A repulsa aos políticos e ao modo usual de se fazer política foi a primeira. Traduziu-se em termos “antipolíticos”: desvalorização dos entendimentos e da negociação, dos debates públicos típicos da democracia, dos jogos parlamentares estendidos no tempo, do respeito às minorias e a seus procedimentos parlamentares.
O desejo de “renovação” foi a segunda vertente. Das práticas políticas e governamentais antes de tudo. Renovação da classe política, vista como amarrada a um universo político pouco “decisionista”, refratário à produção de políticas resolutivas. Renovação dos discursos políticos.
O repúdio à corrupção veio por extensão e em atendimento a uma pregação que contagiou o País nos últimos anos, ao menos desde os primeiros passos da Operação Lava-Jato. Aqui a metralhadora girou freneticamente.
O “antipetismo” foi a vertente que recebeu tratamento mais intenso, com direito a todo tipo de mentiras e manipulações. Foi assim em parte porque o PT jamais saiu da vitrine governamental na última década e meia, em parte porque o fracasso do governo Dilma calou fundo e produziu muitos estragos, em parte porque o PT não conseguiu se livrar de suas “narrativas” típicas e separou-se dos ânimos de setores importantes da opinião pública.
A dinâmica da polarização “nós” contra “eles”, ora na versão esquerda vs. direita, ora como oposição democracia vs. autoritarismo, fechou o pacote, capturando eleitores que nenhuma aproximação tinham com o bolsonarismo.
É difícil imaginar que País iniciará o ano de 2019, seja quem for o vencedor do segundo turno.
Mas é fácil perceber o que o vendaval já produziu. O conservadorismo moral ganhou corpo. As redes ocuparam o espaço da TV. Os marqueteiros perderam força. Uma direita (extrema e moderada) adquiriu base popular, de massas, esgrimindo um discurso que, se conseguir ser mais bem elaborada, irá organizar todo um novo campo. As grandes organizações partidárias (PT, PSDB, MDB) atingiram o fundo do poço e não se sabe como e se voltarão à superfície. Uma nova classe política encontra-se em plena gestação.
O novo governo federal terá de conviver com uma sociedade em crispação e com um Congresso fragmentado como nunca antes nesse País.
O sistema político mostra-se esgotado, trocando de pele e de cultura.
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Marco Aurélio Nogueira é professor de teoria política da Unesp
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