- Folha de S. Paulo
Mesmo a propaganda sob medida para cada eleitor é só uma das informações que lhe chegam todo dia
O documentário britânico "The Great Hack" (Netflix), de Karim Amer e Jehane Noujaim, anda fazendo sucesso entre opositores progressistas de Bolsonaro. A intenção da dupla era demonstrar como a gigante de consultoria política Cambridge Analytica adquiriu de forma ardilosa dados de milhões de usuários do Facebook e os utilizou a fim de criar mensagens individualizadas para eleitores indecisos.
Elas teriam sido decisivas para eleger Donald Trump em 2016 e aprovar a saída da Inglaterra da União Europeia (brexit) no referendo do mesmo ano --e ainda propiciar a vitória da extrema direita mundo afora.
O filme defende uma tese controversa: a de que é possível utilizar dados pessoais para influir nas escolhas dos eleitores, um a um, em escala capaz de abalar os fundamentos da democracia.
Todo indivíduo seria presa fácil de organizações colossais a serviço da ultradireita, aptas a manipulá-lo a partir do acesso a seu perfil, do uso das tecnologias de informação e de conhecimentos de psicologia cognitiva.
Quem gosta de ficção científica já viu esse filme muitas vezes. Neste caso, o enredo se baseia numa teoria discutível de como pessoas de carne e osso formam opinião e escolhem seus representantes.
De seu lado, os cientistas políticos tem ao menos três diferentes explicações. Uns afirmam que o eleitor se decide de olho no retrovisor, avaliando o desempenho passado dos concorrentes; outros sustentam que o que conta são as expectativas de desempenho futuro dos que lhes pedem o voto; e outros, enfim, pensam que as pessoas pouco informadas ou desinteressadas da luta pelo poder se orientam por sua simpatia prévia por partidos, ideologias ou símbolos políticos.
De toda forma, o eleitor fica a sós com a urna por um minuto, se tanto. Antes, ele pode ter sido qualquer coisa, menos um detento numa solitária. Terá conversado com familiares, vizinhos e colegas nos ambientes onde transcorre a sua vida social. E a sua escolha resulta necessariamente do cotejo dos candidatos existentes.
Mesmo a propaganda que se pretenda sob medida para cada qual é apenas uma das informações que lhe chegam todo dia. "Nenhum homem é uma ilha", já ensinava o poeta inglês John Donne, há mais de quatro séculos. Nem tampouco o eleitor.
A explicação servida no documentário, portanto, é tão atraente quanto simplificadora. Atribuir, por exemplo, a vitória de Bolsonaro ao bombardeio de mentiras criadas para semear medos e alimentar preconceitos no eleitorado --e elas existiram e circularam-- é cômodo por eximir os perdedores de avaliar seus erros.
*Maria Hermínia Tavares de Almeida, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
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