- Folha de S. Paulo
Divergência e confrontação de opostos são virtudes da democracia, mas hoje se parecem mais com um de seus vícios
Polarização e estridência são marcas da democracia atual. O Pew Reserch Center mostrou que, em pouco mais de duas décadas, a proporção de democratas e republicanos que tem uma opinião muito desfavorável do partido rival cresceu, na média, de 19% para 57%. Os dados são fartos nessa direção. Divergência e confrontação de opostos sempre foram (e continuarão sendo) uma virtude da democracia, mas hoje se parecem mais com um de seus vícios.
Há muitas razões para isso. Pipa Norris, pesquisadora de Harvard, fala de um processo de confrontação cultural. Haveria, na democracia global, uma reação conservadora ao avanço da sociedade de direitos e das pautas progressistas que marcaram o avanço democrático global no período recente. Outros veem nisso o contrário: a reação do homem comum e sua cultura de bom senso reagindo aos excessos da retórica identitária, à falência das velhas elites e suas instituições, partidos, mídia, sindicatos, subitamente disfuncionais e descartáveis.
Não é difícil de perceber que a polarização dá o tom mesmo para explicar o mal-estar da democracia atual. Uma coisa parece certa: a internet tem muito a ver com isso. A neurocientista inglesa Susan Greenfield matou parte da charada quando definiu o mundo digital como um ecossistema de baixa empatia. Mundo sem rosto, sem calor, sem meios tons, confortavelmente distante das pessoas de carne e osso. Foi ele quem criou o grande paradoxo: nos deu imensa liberdade, mas também o caos.
O Brasil fez bem a lição de casa da polarização. O país já vinha polarizado desde a época de ouro do lulismo. A retórica do “nunca antes neste país”, desaparecida no tempo, já continha a lógica da exclusão. Nós, o povo, contra vocês, a elite, que nunca fez nada direito. Tudo isso explodiu, do lado inverso, e em certa medida como a mesma fúria, após as eleições de 2014. Não é preciso ir muito longe recontando essa história. Bolsonaro é, entre muitas coisas, o resultado de um país que já vinha polarizado há muito tempo.
Meu ponto é argumentar que tudo isso tem levando a um certo cansaço. A última pesquisa Datafolha mostrou uma crescente rejeição ao estilo do presidente, ainda que mais de 40% prossigam achando que ele sempre, ou na maioria das vezes, se comporta bem. O país segue dividido, ainda que cada vez mais desconfiado.
O desafio brasileiro, para além do amor ou do ódio ao presidente, é confrontar um certo estilo de fazer política. Este mesmo que nos levou ao mal-estar (alguns chamam de crise) da política atual. E é nesse ponto que se abre um espaço para a moderação.
Moderados, nos dias que correm, não gozam lá de grande conceito. Na era da guerra cultural, eles tentam estipular limites para a ação política. Tentam incorporar, pacientemente, uma visão plural de mundo e diferenciar a política da crença, sabendo que também a ideologia pode ser um tipo, por vezes mais perverso, de religião.
Moderados não gozam lá de grande prestígio porque são frequentemente confundidos com o centrismo político, ou ao menos sua caricatura. O tipo sem opinião, ou sempre disposto a negociar a sua opinião. É um engano tudo isso. Um moderado pode defender posições liberais ou socialistas, não é esse o ponto. Sua marca é recusar a posição de dono da verdade. E isso faz toda a diferença.
O moderado é o sujeito que não tem medo de lidar com os fatos inconvenientes que podem afetar suas próprias posições. O presidente é autoritário? Elogia Pinochet? Inaceitável, ainda mais diante de certa oposição que jamais sujou a língua elogiando ditador nenhum.
O moderado é o tipo que sabe que o mundo é complexo. Ele gosta de Popper e sua teoria da falseabilidade: em vez de correr atrás de mais cisnes brancos que confirmam sua teoria, ele vai atrás do cisne negro. Busca dolorosa. Ninguém gosta do cisne negro, aquele fato maldito que nem sequer deveria existir. Mas que está lá, me provocando a manter o espírito aberto. E a lembrar que só a crença e o fanatismo se fundam em ideias que nunca podem estar erradas.
Por tudo isso, os moderados têm uma contribuição a dar ao Brasil de hoje. A democracia é feita de firmeza de posições, mas também da capacidade de produzir consensos. As reformas que soubemos fazer, nos últimos anos, nos dão um sinal nessa direção. Um sinal ainda frágil e incerto, mas o melhor que temos para seguir em frente.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
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