- O Estado de S. Paulo / Aliás
A distopia parece ser o oposto da utopia, já que esta descreve um mundo ideal alcançável, enquanto a distopia fala de um mundo árido
As distopias são um gênero narrativo surgido no final do século 19, mais especificamente na Inglaterra, após o triste fato de que a visão de mundo utópica não tinha mais eficácia para capturar a imaginação da sociedade.
Naquela época, a ideia de progresso, alçada como um novo deus no Iluminismo francês e britânico, foi posta em dúvida devido à aceleração tecnológica promovida pela Revolução Industrial – e que desumanizou ainda mais os trabalhadores que já viviam em condições insalubres e miseráveis, próximas de uma nova escravidão. Além disso, a eclosão de duas guerras mundiais em um espaço de menos de 30 anos colaborou para o fortalecimento desse gênero na sensibilidade dos leitores, como mostra o sucesso de dois livros que marcaram o século 20: Admirável Mundo Novo, de Huxley, e 1984, de Orwell.
Para muitos, a distopia parece ser o oposto da utopia, já que esta descreve um mundo ideal que ainda pode ser alcançado, enquanto o primeiro prevê um mundo que todos nós queremos impedir que exista.
Como explico no meu livro Crise e Utopia (2012), o criador do termo utopia, Sir Thomas More, já avisava aos amigos, quando publicou o escrito com o mesmo nome, em 1516, que o mundo criado especificamente para o relato das aventuras do navegador ficcional Raphael Hitlodeu era, de fato, uma descrição do que poderia se tornar a Inglaterra do século 16. Para quem ainda não sabe, utopia é um neologismo grego com o advérbio ou – “não” – e o substantivo topos – “lugar”. O som resultante dá a impressão de ser uma palavra latina, utopia/ eutopia, que resulta em um outro trocadilho, desta vez significando lugar “feliz” ou “afortunado”. No próprio esboço inicial de More, a ilha se chamava Nusquama, outro trocadilho para “nenhures”.
Esta referência ambígua ao “estado de bem-aventurança” do mundo de Utopia como modelo de justiça para a Inglaterra é outra piscadela de More ao tratado de Santo Agostinho, A Cidade de Deus. Na lógica interna do texto humanista, Utopia é a cidade divina que foi finalmente levada a cabo na Terra; contudo, o próprio nome da ilha indica que ela não existe em lugar nenhum e isto é a prova de que More sabia que a cidade de Deus, ordenada pelo amor Dei, jamais seria vislumbrada por qualquer criatura enquanto vivesse neste “mundo devastado”.
A “cidade”, para Agostinho, existe em um sentido figurado, próximo do “místico”, que se divide em duas sociedades comandadas por dois tipos diferentes de amor. O primeiro une todos os membros e os liga por meio de uma homonoia, uma comunhão; o segundo é o amor de si que chega ao desprezo de Deus, o qual Agostinho não hesita em identificar com o próprio Diabo.
Em Utopia, a lógica é invertida – e More mantém o tempo todo a noção de que ela é uma sociedade das trevas, como mostra o nome de sua capital (Amaurot, “capital da escuridão”); a sua eutopia é uma distopia que, mais cedo ou mais tarde, será consumida pela entropia da morte. Deste último fato – a indesejada das gentes –, ninguém escapará e tanto Agostinho como More tinham uma consciência aguda disso, mesmo se a cidade de Deus descesse dos céus.
A mesma noção trágica da existência humana ocupa a mente de Platão em A República – na verdade, o seu título é Politeia (algo como A Constituição ou O Paradigma), uma outra influência marcante na obra de More. O desejo do aventureiro Hitlodeu de perdurar o “estado de bem-aventurança” de Utopia em outros países europeus é uma das referências moreanas ao diálogo platônico, em especial ao famoso conceito de que a cidade ideal imaginada por Sócrates e Glauco, em sua conversa sobre a Justiça, não passa de um “modelo criado por pensamentos (logoi)”. Em grego, “pensamento” tem similaridade com “palavra” (logos) e também com “sentido”. Portanto, a república de Sócrates é uma sociedade que jamais existirá no mundo real porque seu “sentido” é formado apenas de “palavras” ou de “pensamentos”.
O que More acrescenta à tradição reflexiva de Platão e Agostinho sobre os rumos da sociedade ideal é a percepção aguçada da recusa deliberada da realidade. O filósofo grego e o santo africano aceitavam a morte como parte constituinte de nossas vidas; já More percebia uma nova tendência que depois seria a norma da modernidade, por meio do personagem Raphael Hitlodeu: o desejo de não aceitar a morte – mesmo que ela esteja presente em todos os lugares, principalmente naqueles que o mundo dos sonhos criou. Assim, esses mesmos sonhos retornam para um passado que já não existe mais ou então rumam para um futuro que se insinua nos nossos anseios mais íntimos. Na verdade, trata-se de uma nostalgia pelo paraíso que culminará na adoração por mundos imaginários – as utopias e as distopias literárias que contaminarão o nosso imaginário moderno.
Portanto, se a utopia era um reflexo distorcido do mundo real, podemos afirmar sem dúvida que, na verdade, o germe distópico sempre esteve presente no próprio gênero literário que supostamente se opunha a ele. A utopia é também uma distopia (e vice-versa), que, neste caso, leva ao extremo as consequências morais que implicam aceitar a perfectibilidade do homem não só como mera especulação ficcional, mas sobretudo como desculpa para a fuga dos nossos próprios demônios interiores.
*É autor de ‘Crise e utopia: o dilema de Thomas More’ (Vide Editorial, 2012) e ‘A tirania dos especialistas’ (Civilização Brasileira, 2019)
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