segunda-feira, 6 de julho de 2020

Fernando Gabeira - Também sou brasileiro

- O Globo

Estamos tentando segurar a onda dessa grotesca vulgaridade do governo

As noites de quarentena são marcadas por sonhos. Quem conta com eles para melhor se conhecer, acorda tentando recompor lances, faces, atmosfera, interpretando, enfim.

Esse esforço ontológico se amplia no café da manhã, aurora da dura realidade cotidiana: não importa quem eu seja, também sou brasileiro.

Os jornais dizem que brasileiros não podem entrar nos Estados Unidos. Não podem entrar na Europa. Em tempos de pandemia, isto significa que não soubemos cuidar da vida. Dizem também os jornais que 29 fundos de pensão ameaçam não investir no Brasil enquanto continuar o processo de devastação da Amazônia. Isto quer dizer que não cuidamos dos nossos recursos naturais, não nos importamos com a vida dos índios, das plantas e dos bichos.

Paulo Guedes disse que nossa imagem negativa é produzida pela ação de alguns brasileiros. Esqueceu-se de um deles, Jair Bolsonaro. A visão de mundo de Bolsonaro, sua política ambiental e seu desprezo pela gravidade da pandemia são alguns dos fatores que arrasaram nosso prestígio no exterior.

O Brasil sempre exalou vida, alegria, música exuberante e talentosos intérpretes. O próprio Guedes e Bolsonaro participaram de um espetáculo devastador para nossa imagem: uma live em que é tocada no acordeom a “Ave Maria” de Schubert.

Isso correu mundo. Em Portugal, foi tema de debate num programa de TV. Um dos debatedores, consternado com a qualidade do espetáculo, disse: qualquer brasileiro com mais de cem de QI deve estar envergonhado. A hipocrisia da homenagem aos mortos na pandemia, a qualidade do intérprete, a própria live, eram uma visão rastaquera do Brasil.

Não trabalho com critérios de QI, nem conheço bem as diferenças entre seus números. Imagino que Paulo Guedes, a julgar pela admiração da elite brasileira, tenha um dos índices mais elevados.

A impressão que tive dele na reunião de 22 de abril não é boa. Não tanto por se inspirar num ministro da Economia nazista, nem por propor trabalhos militarizados para os jovens. O que me chamou a atenção foi ouvi-lo dizer que leu oito livros para cada uma das experiências de reconstrução alemã.

Nelson Rodrigues, quando alguém argumentava com números e frações, 50,2, por exemplo, perguntava: para que os quebrados? No meu caso, perguntei a mim mesmo, por que uma simetria tão rigorosa de leitura? Não seria algo para impressionar a maioria de iletrados em torno da mesa?

Paulo Guedes está enganado. Estamos tentando segurar a onda dessa grotesca vulgaridade do governo brasileiro. Quando se faz o movimento Stop Bolsonaro lá fora é para mostrar que nem todos os brasileiros compartilham essas ideias retrógradas.

Paulo Guedes apontou para nos representar no Banco Mundial um homem que diz odiar a expressão “povos indígenas”. Essas duas participações, uma no campo da estética, outra, no da economia, são suficientes para que se olhe no espelho e pergunte: serão mesmo os outros brasileiros que comprometem nossa imagem no exterior?

Os liberais brasileiros têm uma longa relação com o autoritarismo. Alguns de alto nível, como Milton Campos e Pedro Aleixo, tentaram ser discretos no seu escorregão histórico.

Os liberais na economia parecem topar tudo por seu projeto. Assim como os estatizantes também topam. Se dependêssemos do radicalismo dos primeiros, estávamos sem um instrumento essencial nessa crise: o SUS. Se dependêssemos dos estatizantes radicais, não teríamos privatizado as telecomunicações e nem amenizado o impacto da pandemia.

Guedes, Bolsonaro e os militares precisam saber que também somos brasileiros e que grande parte de nosso poder depende da arte, da diplomacia da paz, de uma respeitada legislação ambiental.

Eles demoliram nosso soft power para colocar no seu lugar essa caricatura de imagem que se transforma em piada nos programas de TV em Portugal, em irritação no norte da Europa.

Eles riscaram o Brasil do mapa mundial. Deveriam ter a lucidez de renunciar e deixar que o recoloquemos. Não é só uma questão narcisística de imagem: é de nossa sobrevivência que se trata.

Já não podemos sair, os capitais dos fundos de pensão não querem entrar, daqui a pouco boicotam nossos produtos no exterior. Por que não se reúnem na intimidade para ouvir o presidente da Embratur tocar a “Ave Maria”? Há espaço para tudo aqui dentro. Mas nem tudo representa o Brasil.

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