segunda-feira, 6 de julho de 2020

Cacá Diegues - Onde estamos agora

- O Globo

Aglomeração nos bares é um elogio à irresponsabilidade de quem mandou e à ignorância de quem foi para as ruas

Estou convencido de que, se as atividades sociais diminuíram ou simplesmente desapareceram com a Covid, as responsabilidades pessoais cresceram muito nesse novo tempo. Não nos interessam mais, às vezes até odiamos, certos gestos e compromissos coletivos de “antigamente”; mas somos fiéis a comportamentos relativos a um caso ou a uma pessoa, que nem sempre precisam de nós. Aos primeiros, já sabemos recusar sem culpa, não participamos deles sem precisar montar desculpas mirabolantes. Aos segundos, atendemos sem vacilação, como se o esforço ou o sacrifício pessoal fossem virtudes naturais. Continuamos seres sociais, mas agora preocupados e dedicados a um outro de cada vez.

Claro que pensamos e discutimos política, por exemplo. Mas a contrariedade com o governo não vem mais de um programa para a nação, mas de uma forma de pensar o ser humano e, portanto, agir sobre seu destino. Mesmo não sendo e nunca tendo sido de direita, podemos até admitir, muito serenamente, que os direitistas devam fazer parte do poder, desde que respeitem o pensamento e o programa do outro, a eventual maioria que não pensa como eles. Nos velhos tempos de hegemonia marxista, socialista ou apenas trabalhista, aqui ou em outros países, isso era impensável. No mínimo, uma traição à verdadeira luta popular, traição merecedora de uma Sibéria ou de um PSDB qualquer.

Com a pandemia, estamos aprendendo a compreender o valor da solidão e a valorizar a solidariedade. Entendemos finalmente que a solidão é a condição em que viemos ao mundo e vivemos nele. Somos os únicos responsáveis por nós mesmos, sobre nós mesmos e o que possa repercutir sobre nossos semelhantes. Sobretudo quando corremos algum perigo, isolados de tudo. Assim como a única arma que possuímos para conviver com o resto do mundo é a solidariedade, o amor sem sentimento de propriedade sobre o outro. Solidão e solidariedade (elas devem ter a mesma raiz latina, não é não?) são coisas indispensáveis no mundo de hoje.

Não podemos saber o que vai acontecer depois da pandemia e é inútil tentar adivinhar. Não sabemos, e não sei se um dia saberemos, quantos seres humanos ainda vão morrer enquanto ela durar. A pandemia é como a invasão de um exército inimigo que veio para tomar nosso espaço vital. Só não fica para sempre se formos capazes de enfrentá-lo com as armas que formos capazes de inventar. Essa flexibilização doida, a “abertura do confinamento” que as fotos do Leblon noturno registraram nos jornais deste fim de semana, esse monte de gente que não sabe que não se retorna nunca ao que já foi, de pessoas tolas a sorrir como se estivessem numa feira inocente e solar, não passam de um elogio à irresponsabilidade de quem mandou e à ignorância de quem foi para as ruas cheias e agressivas.

José Bonifácio Sobrinho, o Boni vitorioso da televisão, declarou a um jornal que só sai de casa quando inventarem a vacina. E ele tem razão. Há mais de quatro meses que sou um membro absolutamente disciplinado do grupo de risco — faço tudo que me mandam fazer, não saio de casa, lavo as mãos o dia inteiro, uso máscara e álcool em gel sempre que necessário. Mas quero poder abraçar meus amigos, beijar minhas filhas e meus netos, sair de casa para passear pelo bairro, reconhecer as esquinas da minha cidade, ver como anda o mundo.

Quero, por exemplo, entrar num cinema do Grupo Estação, que frequento há tantos anos, e que está ameaçado de fechar por falta de público na pandemia. Foi naquelas salas que chorei com “Jules e Jim”, que acreditei no retorno do cinema brasileiro depois de “Central do Brasil”, que torci pelo “Parasita” redentor de tantos filmes de cinematografias como a nossa. O Estação me ajudou a fazer filmes com o que vi lá, tanto quanto os livros que li e as conversas que tive com mestres mais velhos do que eu, como Nelson, Ruy e Roberto, porque escola de cinema eu nunca fiz. Em homenagem ao que sei, vou ajudar o Grupo Estação a sobreviver.

Não vou me meter a adivinhar o futuro, acho que ninguém sabe o que vai acontecer (se soubesse, certamente não estaríamos onde estamos). Mas tenho a impressão de que, desse caos escandaloso, desse mundo pouco nítido em que vivemos, dessa tristeza de quem está perto do fim, alguma coisa nova virá nos salvar como uma luz modesta que aprenderemos a cultivar. Tenho a impressão de que o mundo será mais leve, que os que julgam saber murmurarão a verdade a meus ouvidos, em vez dos urros loucos que todos os lados nos berram agora. Enfim, só há duas alternativas. Ou escolhemos o lado sombrio de negacionistas autoritários e egoístas; ou vamos em direção ao sol do afeto e da transigência.

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