- O Estado de S.Paulo
Bolsonaro vai ser Bolsonaro hoje na ONU, mas, fora do Brasil, quem acredita no que ele diz?
Seria exagero de retórica dizer que o mundo inteiro estará de olhos e ouvidos abertos para o discurso do presidente Jair Bolsonaro hoje, na abertura da Assembleia-Geral da ONU, mas não há como contestar que raras vezes o mundo esteve tão atento, perplexo e preocupado com o Brasil, insistentemente chamado de “pária internacional”. Em vez de amenizar, o risco é Bolsonaro aprofundar os temores de governos, sociedades e investidores.
O tema da ONU neste ano é multilateralismo, mas Bolsonaro deve entrar na contramão, ao lado de seu mentor Donald Trump, com críticas à própria ONU, à Organização Mundial da Saúde (OMS), à Organização Mundial do Comércio (OMC) e ao debate sobre questões de gênero. E, claro, ele não perderia a chance de dizer que o Brasil é “um sucesso” (?!) no combate à pandemia, na recuperação da economia e na preservação do ambiente.
Ninguém se surpreende mais com as falas de Bolsonaro, o surpreendente é que, quanto mais estrangeiros se chocam, mais brasileiros acreditam e até replicam as barbaridades sobre a covid-19, meio ambiente e uma tal ameaça comunista. O documentário O Dilema das Redes explica muita coisa, mas não como tanta gente com diploma, carreira, livros nas estantes e acesso a múltiplos meios de informação compra o que ele diz – sem ruborizar.
A covid-19 já atinge 196 países em todos os continentes, com 31 milhões de casos confirmados (na realidade, são muito mais), e vai atingir um milhão de mortos ainda em setembro, mas eles dizem que não é pandemia, só histeria da mídia. Jura? Se não é pandemia, é o quê? E, no Brasil, já estamos chegando a 140 mil mortos, mas o presidente, sem máscara, sorridente, foi aplaudido por produtores rurais ao dizer que o “Fica em casa” é “conversinha mole para os fracos”.
Amazônia e Pantanal estão em chamas e o avião do presidente teve de arremeter abruptamente por excesso de fumaça em Mato Grosso. O que ele diz? Que há “alguns focos” de incêndio, mas o Brasil é “um exemplo” de preservação. Em fila, o vice Hamilton Mourão e os ministros batem continência. A verdade, porém, é que está muito quente e seco e o risco de incêndio aumenta muito, mas há sérios indícios de incêndios criminosos e o governo foi displicente, imprevidente.
O Brasil, os fundos internacionais, oito grandes democracias, ex-ministros da Economia, ex-presidentes do Banco Central, os maiores grupos do agronegócio nacional e, evidentemente, ambientalistas das mais variadas tendências e regiões do mundo cobram ações, mas na realidade delirante do presidente, as críticas têm origem “oculta”, com o objetivo de derrubá-lo – como disse ontem o general Augusto Heleno.
Por fim, o discurso na ONU, gravado, ocorre em meio a mais um fuzuê na política externa, com a visita do secretário de Estado Mike Pompeo a Roraima, de onde lançou ameaças a Nicolás Maduro. Afora Gleisi Hoffmann e um petista ou outro, ninguém apoia Maduro e o regime da Venezuela, mas daí permitir que um terceiro país use o Brasil para atacar um vizinho? A 46 dias das eleições americanas? E quando os EUA vão presidir o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), após 66 anos?
Rodrigo Maia considerou uma “afronta”. Fernando Henrique Cardoso e ex-chanceleres classificaram como “utilização espúria do solo nacional”. E o ministro Ernesto Araújo, que serviu de escada para Pompeo, reagiu com populismo e o “sofrimento do povo venezuelano”. Não colou. E serviu para acordar Câmara, Senado, diplomatas, academia e a mídia.
Assim, o discurso de hoje não é só mais um de presidentes brasileiros abrindo, ano a ano, a Assembleia-Geral da ONU, mas uma boa chance para Bolsonaro expor ao mundo quem ele é. Aliás, será que ele acha que a Terra é plana?
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