- O Globo
Presidente induz a crise e se desincumbe dos prejuízos
Não
haverá mais Renda Brasil. Não para Paulo Guedes. Nisto consistiu a mensagem
daquele vídeo bravinho: o presidente asfixiando a existência política do
Ministério da Economia. Esse foi o recado. O cartão vermelho; que, em política,
não significa, não necessariamente, ser expulso de campo, mas, com frequência,
não ter acesso à bola. O ministro, que queria ser o pai do novo Bolsa Família,
alijado do instrumento competitivo por meio do qual — na corrida com Rogério
Marinho e seus
tarcísios — concorria para
ser protagonista do financiamento à campanha de reeleição do chefe.
O
presidente sabia o que Guedes desejava. E lhe tomou os meios. O ministro
aceitou. Ele aceita. Aceita ser a carcaça reformista para mercado ver, o boi de
piranha liberal — para que avance o populismo reacionário de Bolsonaro. Nesta
altura, já sem qualquer margem para dúvida, quem fica, quem topa encenar o
liberal-guedismo, anui.
O
novo programa virá. Bolsonaro — que só pensa em reeleição —precisa tornar
permanentes, também para si, os efeitos do auxílio emergencial. É questão de
identidade. O auxílio lhe é associado — e traz dividendos. A incorporação do
Bolsa Família ao que se chamou de Renda Brasil, como estabelecimento de nova
etapa de ajuda aos sem- renda, sustenta essa identidade. Não é algo de que se
abra mão.
O
programa, pois, virá. Talvez com outro nome. Decerto com outro centro
viabilizador. O Parlamento, provavelmente. Mas com o beneficiário de sempre:
Jair Bolsonaro. Um mestre em gerar demanda e transferir ônus.
Aquele
vídeo não trouxe, portanto, apenas a rarefação do ar para Guedes. Impôs,
também, transferência de responsabilidade; de pressão. Consistiu em exibição de
gala da duplicidade de Bolsonaro, que consegue se apresentar como observador
externo, não raro crítico duro, do próprio governo. No caso: como se nada
tivesse a ver com seu Ministério da Economia — um ente a que apenas reagiria.
Funciona.
Há um jogo. Parece teatro — de modo que a desconfiança não será excessiva. Fato
é que o minion Guedes aceita. O Ministério da Economia como
vilão. O presidente, aquele que não tirará dos pobres para dar aos paupérrimos,
o homem bom.
Nota-se
um padrão. A equipe econômica solta balões de ensaio — tão impopulares quanto
de difícil aprovação. Testa mercados. Mede os sócios. Afere insatisfações.
Alguém eventualmente morre no caminho, estimulado a propor o debate — e
sacrificado sem saber. Não foi assim, ainda em 2019, com a nova CPMF? Marcos
Cintra tombou. Mas a carga por um novo imposto voltaria, amaciada, em 2020.
O
roteiro é o mesmo. O auxílio emergencial acabará. Milhões entre os seus
beneficiários não estão cobertos pelo Bolsa Família. Ficarão ao relento?
Bolsonaro — o que lavou as mãos — aposta que não. Projeta-se uma conta a pagar.
E há o teto. Falta dinheiro. Mas o programa é necessário. Ele não quer ser
responsável pelo preço de remanejar recursos — tirando de alguém — nem por uma
ostentação de irresponsabilidade fiscal (que não para beneficiar militares e
forças de segurança). E aposta em que a independência do Congresso — a tão
exercida autonomia política do Parlamento — agirá para que os mais frágeis,
expostos pelo impacto econômico do vírus, não fiquem desamparados.
Bolsonaro
define a agenda, planta a demanda, induz a crise e se desincumbe dos prejuízos
derivados da implementação do programa. Que virá. Tem sido assim. Aqui, tirou a
bola de Guedes e deu ao Congresso. Colherá os louros. Afinal, este é um
Parlamento capaz de esquentar camuflagem de sonegação fiscal (por igrejas).
Como não supor que dará um jeito de encaixar o novo Bolsa Família?
O
presidente conhece a natureza do Legislativo. Conhece-lhe os vícios; que também
são seus. E os explora. Sabe que a maioria dos parlamentares, como ele próprio,
vai submetida a grupos de pressão — o empresarial-evangélico entre os mais
poderosos. É a condição para que Bolsonaro use, ao estado da arte, sua
duplicidade, sua dubiedade discursiva, disparando sinais em sentidos
contrários.
O
presidente Bolsonaro é o deputado Bolsonaro, conforme visto no episódio do veto
à distribuição dissimulada de lucros por igrejas. O presidente que vetou é o
deputado que — avisa — derrubará o veto. Vetou; para, em seguida, estimular que
o Congresso lhe derrube um ato. É operação sofisticada. Que articula uma
mentira influente e requentada — a de que, se não vetasse, montaria a forca
para o próprio impeachment — com um hábil controle do tempo de comunicação;
donde consegue costurar, como se conciliáveis, três sentenças de convivência
impossível: vetar perdão de dívida, atender a Guedes, encorajar a derrubada do
veto.
É evidente que algo — o atendimento ao ministro — sobra. Não, porém, para efeito de informação em rede; o zap profundo alimentado de todas as versões, ao gosto do freguês, pela gestão do timing. E Guedes aceita; mais uma vez se prestando a escada, empenhando a coluna em custear o projeto de poder de Bolsonaro — que é também, claro está, o seu.
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