Enquanto
1% da população chilena detém 26,5% da renda nacional, 50% sobrevivem com
apenas 2,1%, segundo a Cepal
‘Só faltava uma faísca, qualquer faísca, para
explodir tudo’, estimou o historiador Gabriel Salazar. A faísca veio na forma
de um aumento das passagens do metrô, consideradas entre as mais caras do
mundo. Os estudantes resolveram não aceitá-lo e pularam as catracas sem nada
pagar. Aconteceu em 18 de outubro de 2019, estação Los Héroes, Santiago do
Chile.
O
presidente Sebastian Piñera alarmou-se: “Estamos em guerra contra um inimigo
poderoso que não respeita nada e ninguém”. Desatou-se a repressão e... tudo
explodiu. Grandes passeatas, panelaços, saques de lojas e supermercados,
incêndios e depredação de estações de metrô e prédios públicos. A ira popular
em ação.
Uma
semana depois, realizou-se a maior manifestação pública da história do Chile:
1,25 milhão de pessoas nas ruas da capital. Ao mesmo tempo, outras grandes
passeatas em Concepción, Valparaiso e até em pequenas e médias cidades como
Rancagua, Coquimbo, La Serena. E mais greves nos portos e barricadas nas
estradas. Algumas semanas depois, em 12 de novembro, 2 milhões de trabalhadores
em greve.
Por que tanta insatisfação? Tania Vallejo, mulher comum numa das passeatas, deu uma pista: “Não estamos protestando apenas contra o aumento do metrô, essa foi a gota d’água. Estamos ofendidos há tempos. Pisaram-nos por muitos e muitos anos, e nunca se fez nada. Agora, a coisa entrou em colapso”.
Estudos
da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, a Cepal, informam:
enquanto 1% da população detém 26,5% da renda nacional, 50% sobrevivem com apenas
2,1%. Os reajustes dos salários não acompanham o aumento dos preços dos
serviços de luz, água, saúde, educação, transportes, comunicações, todos
privatizados e cada vez mais caros. Para pagar as contas, as famílias recorrem
a um endividamento crescente. No momento, 75% dos ganhos familiares vão para
pagar dívidas. Em pior situação encontram-se os que dependem da Previdência
Social, também privatizada. Em 2018, 50% dos pensionistas tiveram direito a uma
pensão de menos da metade de um salário mínimo.
Daniel
Matamala, jornalista, põe o dedo na ferida: “O governo só tem dois discursos
—planilhas Excel e porrada. Enquanto isso, a política permanece cega, surda e
muda”. E cada vez mais desacreditada: pesquisas registraram que o Congresso
Nacional e os partidos políticos detêm a confiança de apenas 3% e 2% das
pessoas respectivamente.
As
gentes tinham motivos para se revoltar — e se revoltaram. Tiveram que se haver
com violenta repressão: dezenas de milhares de presos, incluindo cerca de 4 mil
menores de idade, 3 mil feridos (405 perderam um olho, alcançados pelas balas
de borracha; 253 queimados pelas bombas de gás lacrimogênio), quatro mortos. O
Instituto de Direitos Humanos registrou 770 denúncias de tortura, 158 acusações
de abusos sexuais. Mas não foi possível intimidar. A luta prosseguiu e obteve
vitórias substantivas.
Um
ano depois, a principal demanda política da rebelião social foi aprovada por
ampla maioria. Em recente plebiscito, 78,2% aprovaram uma nova Constituição. E
79% a querem elaborada, no prazo de um ano, por uma convenção de cidadãos
livremente eleitos, metade formada por mulheres, metade por homens.
Na
base do processo, incentivando e alavancando as manifestações, surgiram as
assembleias e coordenações territoriais, autônomas em relação aos partidos e ao
Estado, espaço de liberdade e de participação. Articulam jovens, mulheres,
homens feitos e velhos, sem falar nos mapuches, descendentes dos povos
originários do Chile, desprezados por uma longa história de preconceitos.
O
processo de auto-organização da sociedade evoca as reflexões de Hannah Arendt
sobre a liberdade, a ser pensada não apenas como ausência de repressão, mas
como ação política e participação ativa, consciente e permanente no espaço
público. Segundo a filósofa, aí estaria o tesouro perdido das grandes
revoluções. O povo chileno, quem sabe, o estaria redescobrindo. Seja como for,
uma coisa é certa: os pássaros fugiram das gaiolas, e não vai ser fácil
recuperá-los.
*Professor
da Universidade Federal Fluminense
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