Antes ou depois das eleições e independente dos seus resultados, política se
deve fazer com diálogo, se estamos pensando a política num contexto
democrático. Porém, precisamente nesse contexto, a política é também competição
e disputa, concertação e confronto, escolha e eleição. Uma vez rotinizada, essa
dinâmica passa a legitimar os atores, as alianças e os campos de força que se
estruturam num embate permanente.
Jair
Bolsonaro foi eleito em contexto democrático – embora já tenha dado todas as
mostras de que seja um personagem antidemocrático. Com ele emergiram na cena
política seus apoiadores mais fieis que estruturam o que se vem chamando de
ultra ou extrema-direita. Tão antidemocráticos quanto ele. Há correntes
políticas, especialmente à esquerda, que atuam no contexto democrático, mas
sonham em suprimi-lo uma vez alcançado o poder – embora isso jamais possa ser
dito publicamente, tendo que permanecer à sombra.
As
forças que querem manter ou dizem querer manter a democracia no País sugerem
uma “frente” de atores diversos para enfrentar Bolsonaro em 2022. Há algum
tempo se fala em “frente democrática” ou “frente ampla”; mas há aqueles que
falam que somente lhes interessa uma “frente de esquerda” (que eles supõem ser
“democrática”) para realizar tal objetivo.
As eleições municipais que o País vivenciou nos últimos dias acabaram por revelar um quadro de grande dispersão de forças, cobrindo todo o espectro político, conforme o filósofo Marcos Nobre apontou em entrevista recente[1]. Vale notar que algumas forças políticas diminuíram seu poderio, outras emergiram como forças “renovadoras” (embora em estado bastante rudimentar, eleitoral e politicamente) e outras ainda ressurgiram de um patamar que alguns consideravam pré-falimentar, o que é um dado pouco observado nas análises dos resultados.
Alguns
aspectos chamam a atenção na “leitura” que Marcos Nobre faz dos resultados
eleitorais. Para ele não há (e talvez nunca haverá) um centro político no
Brasil. Só existe extrema-direita, direita e esquerda. É visivelmente um
raciocínio binário – reduzindo tudo ao embate direita versus esquerda. Há quem
goste desse tipo de concepção porque é algo simples e esquemático. Enquanto boa
parte dos analistas julgaram que Bolsonaro foi o grande derrotado, para Nobre,
Bolsonaro saiu fortalecido em função do desempenho positivo dos partidos do
Centrão, o que, em parte, corresponde à verdade. Se esta análise estiver
correta, há um problema subsequente que precisa ser ponderado.
A noção
de frente supõe um adversário autoritário que estabeleceu ou tende a
estabelecer um regime dessa natureza. A noção de frente, neste caso, é
essencialmente defensiva diante de um regime que suprimiu ou visa suprimir os
espaços democráticos. A consciência dos atores em relação a essa determinação
deve ser cristalina e a perspectiva é de ceder e conciliar visando derrotar um
inimigo maior e mais poderoso. Se a força de Bolsonaro está no Centrão,
dilui-se efetivamente a ideia de que um regime autoritário ou iliberal está
prestes a ser instalado no País. As razões de ser do Centrão não estão no
estabelecimento de um regime fechado. Ao contrário, o Centrão é causa e produto
do que o próprio Nobre definiu, em seu tempo, como “peemidebização” da política
brasileira.
No PT de
Lula, no Psol de Freixo e em diversas organizações de esquerda debate-se o tema
da “frente”.
A
despeito do “renascimento do diálogo” (o que supõe até mesmo um diálogo de
surdos), o cenário, por enquanto, está mais para a afirmação de campos
políticos a serem articulados como candidaturas competitivas que,
eventualmente, podem agregar em torno de si as tais “frentes”. Pode-se pensar
hipoteticamente que é provável que se componha uma frente de esquerda, uma
frente à direita que apoiará Bolsonaro, e uma frente ao centro (mais à esquerda
ou à direita) que irá se contrapor às duas mencionadas; sem falarmos na
aparição de candidaturas minoritárias que não estarão interessadas nesse tipo
de estratégia. O resultado mais saliente das recentes eleições municipais é a
vitalidade da dimensão competitiva dos atores, expressa na dispersão de forças
observada. É de se supor que apenas a esquerda vai conduzir sua estratégia
vocalizando a antiga linha de frente democrática ou popular porque isso faz
parte do seu repertório identitário.
No
fundo, a noção de frente é, até mesmo do ponto de vista da linguagem, algo que
está em descompasso com o cenário competitivo que assumiu a democracia
brasileira. E, se é correto, que a dispersão aumentou, levando-se em conta o
apetite que certas lideranças sempre revelaram, o cenário é mais ainda de
disputa do que de “concertação”.
Ao
contrário da “leitura” de Nobre, Bolsonaro se enfraqueceu e o Centrão – sua
salvação pragmática – passa a ter mais poder. Para Bolsonaro, não há mais
espaço para a retomada da “guerra de movimento” do Ano 1. O fascismo ou a
perspectiva de imposição de um regime iliberal ficaram para trás. Por outro
lado, Bolsonaro é inepto para conduzir uma “guerra de posições”. O Ano 2 é a
expressão disso, vide por exemplo o desastre que é a “gestão” de combate à
pandemia (se é que se pode chamar o que existe de “gestão”) e os resultados
eleitorais também desastrosos para o bolsonarismo. Nessas circunstâncias,
pode-se perguntar: haverá sentido em se propor uma “frente democrática” para
enfrentar o fascismo, com sua marca defensiva, sabida e reconhecida?
Para o País importa efetivamente produzir uma alternativa que ultrapasse a situação presente e projete uma saída convincente para o futuro tendo como base um programa modernizador, democrático e cosmopolita, que valorize a interdependência e a globalização para retomar o lugar do Brasil no mundo. Superação, enfim, do bolsonarismo e da crise nacional. A justa demanda de Luiz Werneck Vianna de que precisamos retomar o “fio da meada” deve encontrar seu roteiro a partir de uma abordagem política em plano global. É a isso fundamentalmente que os atores democráticos devem se dedicar, olhando para o futuro e não para o passado, invariavelmente filtrado a partir de demarcações ideológicas.
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(Publicado
no site da ADUR-RJ: http://www.adur-rj.org.br/portal/2022-nao-e-mais-uma-miragem/)
[1] A entrevista de Marcos Nobre pode ser acessada no link https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,marcos-nobre-eleicao-deixou-todos-mais-ou-menos-do-mesmo-tamanho,70003523553. Marco Aurélio Nogueira escreveu um comentário crítico à entrevista de Nobre que seria importante visitar: https://politica.estadao.com.br/blogs/marco-aurelio-nogueira/apos-as-eleicoes-dialogo-e-negociacao-terao-de-prevalecer/ . Uma leitura contraposta a de Marcos Nobre sobre as eleições municipais e uma avaliação das perspectivas abertas ao centro político está na entrevista de José Álvaro Moisés concedida à revista Época: https://epoca.globo.com/brasil/oito-perguntas-sobre-centro-do-espectro-politico-para-professor-jose-alvaro-moises-1-24757304 .
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