Progressistas
decidiram falar exclusivamente à 'elite' das grandes cidades e às minorias
negra e latina
Jeffrey
Sachs, economista, foi o guru das reformas de mercado na Polônia dos anos 1990.
Anthony Scaramucci, empresário das finanças oriundo de uma família de
trabalhadores, é um republicano convicto que rompeu com Donald Trump. Barack Obama,
presidente antes de Trump, é a principal voz do Partido Democrata. Os
diagnósticos deles sobre a eleição
americana formam um mosaico que ilumina a encruzilhada
histórica que se apresenta diante dos progressistas.
Sachs:
“A política nos EUA é basicamente uma luta entre os que têm ensino superior e
os que têm ensino médio”. Os primeiros votaram nos democratas; os segundos, nos
republicanos.
Trump perdeu, mas desmentiu a antiga lenda que associa a expansão da proporção de votantes a triunfos esmagadores do Partido Democrata. Na eleição com maior participação desde 1908, Trump obteve 10,5 milhões de votos a mais do que em 2016 e os republicanos ampliaram sua minoria na Câmara.
O
“povo branco” —isto é, os brancos da classe trabalhadora— novamente escolheu
Trump, apesar da pandemia e
da recessão. Mais: Trump avançou entre os latinos e até entre os homens jovens
negros, perdendo nesses setores por margens menores que quatro anos atrás. De
certo modo, o Partido Republicano repaginado pelo nacionalismo de direita é o
partido popular dos EUA. Há, nisso, um alerta para o Brasil.
Scaramucci:
“Foi um voto de protesto contra a elite e a mídia que diz mais sobre os
eleitores do que sobre Trump. Essas pessoas já não creem que o sistema serve a
seus interesses”.
Não
se deve confundir 73 milhões de americanos com um núcleo de fanáticos
direitistas. A massa de eleitores de Trump não é formada por “deploráveis”, o
rótulo empregado por Hillary Clinton, e não compartilha os trechos mais
desprezíveis de seu discurso xenófobo, racista e autoritário.
Mas,
sob o impacto da dissolução do “sonho americano”, eles votam contra o
“sistema”. A lição vinda dos EUA ajuda a decifrar a popularidade de Jair Bolsonaro.
Obama:
“A minha simples presença na Casa Branca desencadeou um pânico profundo: o
sentimento de que a ordem natural foi despedaçada. Trump ofereceu, a milhões de
americanos assustados pela visão de um homem negro na Casa Branca, um elixir
para sua ansiedade racial.” É verdade —mas uma verdade que solicita contexto.
Nos
EUA, entre os brancos, a divisão de classes refrata-se como cisão geográfica. A
população com ensino superior vive nas principais cidades; os demais, nos
núcleos interioranos.
As desigualdades
sociais, acirradas nas últimas décadas, empurraram a universidade
para fora do alcance de grande parcela da classe média. Um Everest de US$ 1,6
trilhão de dívidas estudantis pesa sobre as costas das famílias que, um dia,
nutriram-se do sonho de ascensão social. Trump fala ao “americano esquecido”
que desistiu de ouvir Obama.
O
mapa eleitoral conta a história inconveniente. O Obama de 2008 triunfou nos
estados decisivos do Meio-Oeste em declínio econômico: Pensilvânia, Michigan,
Wisconsin, Minnesota e até Ohio e Iowa. O Trump de 2016 venceu em 5 dos 6.
A
“ansiedade racial” só se manifestou após o duplo mandato do “homem negro na
Casa Branca”. Biden recuperou três desses estados, mas por margens apertadas
decorrentes da elevada participação das maiores cidades.
O
Partido Democrata tornou-se o partido popular dos EUA por meio de duas rupturas
fundamentais separadas por três décadas: Franklin Roosevelt e o New Deal
conquistaram a classe trabalhadora do Meio-Oeste; Kennedy, Johnson e a Lei dos
Direitos Civis conquistaram o voto negro.
Porém,
nos últimos tempos, hipnotizados pelo multiculturalismo, os progressistas
decidiram falar exclusivamente à “elite” das grandes cidades e às minorias
negra e latina.
A
opção asfaltou a estrada na qual transita a direita nacional-populista. Biden
não assinala o fim da história.
*Demétrio
Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”.
É doutor em geografia humana pela USP.
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