sábado, 28 de novembro de 2020

Aylê-Salassié F. Quintão* - Esfera pública colonizada

Escrevera antes um livro intitulado A Tolice da Inteligência Brasileira (2015), mostrando como a opinião pública é, há tempos, manipulada por aqui. Em 2017, surgiu com a A Elite do Atraso, assustando também muita gente.  Suas reflexões são implacáveis contra alguns autores nacionais mistificados como configuradores da cultura brasileira, ao terem suas ideias incorporadas nos discursos de historiadores, economistas, sociólogos, antropólogos e até mesmo educadores para explicar o Brasil para brasileiros e estrangeiros. Trata-se do sociólogo Jessé Souza, professor da Universidade UFABC, de São Paulo.

A atual geração não pode reclamar. Sempre teve opções diferentes com Manoel Bonfim (1868-1932), Caio Prado Junior (1907-1990), Otto Maria Carpeaux  (1900-1978), Darcy Ribeiro, (1922-1977) et alli. Com este último, já exilado, tive contatos pessoais, no Uruguai, quando escrevia o Processo Civilizatório (1968). Não faltaram  algumas dezenas de autores nacionais e estrangeiros no campo da Antropologia, da Sociologia, da Política, da Literatura e da Educação. Minha dissertação de mestrado – Jornalismo Econômico no Brasil como Aparelho ideológico do Estado (1987) – foi baseada no francês Louis Althusser (1918-1990).

O que assustou mesmo em Souza foi a desqualificação de três leituras básicas da formação dos brasileiros e que marcam ainda hoje o entendimento e o  comportamentodos cidadãos, tanto de direita quanto de esquerda: Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala (1933); Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (1936) e  Raymundo Faoro, Os Donos do Poder (1958).  São autores com diversas edições até em outros idiomas, adotados por praticamente todas as universidades do Brasil e algumas no exterior que aprendemos a respeitar e a admirar. Servem ainda à interpretação dominante da realidade no Brasil. Refletem, contudo, claramente,  a vitória do liberalismo conservador, e que leva à colonização, inclusive do pensamento crítico no Brasil.

O sociólogo teve a oportunidade de desfrutar de um olhar distanciado, a partir da Alemanha e dos Estados Unidos, onde foi aluno e professor, e pôde observar de longe o País. Jessé ameniza as críticas a Gilberto Freyre, a quem atribui a criação da matriz identitária brasileira, mas não perdoa Sérgio Buarque. Considera-o responsável  por ter criado, a partir da herança das humilhantes relações sociais no escravagismo,  a ideia do tal “homem cordial”, semente cultural   da sociedade desigual e perversa que se entranhou na alma do brasileiro, como uma continuidade da sociabilidade que sucedeu à abolição.

Segundo ele, caberia  ao antropólogo Roberto da Mata arrematar as intenções de Buarque, instituindo a síndrome do “vira lata” – sentimento de inferioridade –, uma distinção social desprezível.  Teriam eles naturalizado este perfil para o brasileiro, a partir da  escravidão. Por isso, a desigualdade constitui-se em traço fundamental da sociabilidade brasileira.

Souza não dá tréguas também  a Faoro por institucionalizar a noção de “patrimonialismo”, vinda lá da colonização ibérica,  e que abriga por aqui o homem corrupto, gerando o “jeitinho brasileiro”. Ambos o teriam ajudado a identificar o que chamou de “os donos do Poder”, vindo desembocar na Lava Jato  e em uma mídia hegemônica que procura dar vida a um aprendizado societário (cultural) simbólico deprimente, pervertido  e subserviente. O atraso do Brasil para Faoro estaria no Estado, e não no mercado, esse ente supostamente invisível, omitido, por meio do qual circulam os interesses privados, confundindo-se com o interesse público.  O Estado é o seu negócio, alerta.

 Com relação aos conflitos de classe  no Brasil, diz que  privilégios , preconceitos e alianças dão configuração a  um padrão histórico, refletindo apenas discordâncias efêmeras entre políticos, partidos e intelectuais.  A classe média pressionada, de um lado, pela atração do capital que não lhe pertence e sob  pressão da pobreza,  de onde veio, serve cabisbaixa de ponte  para legitimação das fantasmagóricas  forças do mercado . Nesse  espaço transitam a alternativa dos morenos (mulatos), a quem a mídia acena cinicamente  com um charme emancipador, de fato antropofágico e caricaturado.

Desnorteados historicamente, estes segmentos médios emancipadores comportariam fraçõesdistintas de classe que vão de  liberais, protofascistas,  expressivistas revolucionárias, domadas pelo capital financeiro, e a crítica   aflorada da pobreza e da humilhação social. Não se entendem, embora sejam elas que caracterizam a esfera pública, descritas como  sujeitos privados com opinião própria. Por aqui, tudo seria, entretanto, mediado pelo mercado oligarquizado, distribuído entre interesses do capital e dos atravessadores.

A classe média é o capataz. Adiciona a noção de meritocracia. Colonizada, a classe média funciona como ferramenta, e  até como arma, contribuindo para o aprofundamento da demonização do Estado. Esta servidão é, portanto,  instrumental. Ela não é parte. Não tem autonomia, mesmo estando no Poder. Seus esforços  são limitados por patamares invisíveis de tolerância da classe dos endinheirados. E, assim, o mercado se apropriaria do que seria a esfera pública – o difuso poder da sociedade e do cidadão.

 É a democracia que a escravidão legou ao País. No fundo, o brasileiro é comandado por uma hierarquia de valores, no dia a dia, que se inicia dentro de casa, passa pela escola e se estende por meio da grande mídia – concessão pública –  que, disfarçadamente, lhe traçam um perfil de vira-latas.  O passado do brasileiro – intocado até hoje, observa Jessé – é o herdado das relações sociais na escravidão: despreza o negro e o pobre e tolera o mulato, submetidos na cotidianidade a um distanciamento covarde e silencioso, que a história vai digerindo no processo de colonização da esfera pública, por meio de falsas noções e a imprecisão de conceitos científicos difundidos na vida social. Ninguém nasce imbecil. É feito idiota. Só a pandemia pode resgatar o brasileiro.

*Aylê-Salassié F. Quintão, Jornalista e professor

Nenhum comentário: