A atual geração
não pode reclamar. Sempre teve opções diferentes com Manoel Bonfim
(1868-1932), Caio Prado Junior (1907-1990), Otto Maria
Carpeaux (1900-1978), Darcy Ribeiro, (1922-1977) et alli. Com este
último, já exilado, tive contatos pessoais, no Uruguai, quando escrevia o Processo
Civilizatório (1968). Não faltaram algumas dezenas de autores
nacionais e estrangeiros no campo da Antropologia, da Sociologia, da Política,
da Literatura e da Educação. Minha dissertação de mestrado – Jornalismo
Econômico no Brasil como Aparelho ideológico do Estado (1987) – foi baseada
no francês Louis Althusser (1918-1990).
O que assustou
mesmo em Souza foi a desqualificação de três leituras básicas da formação dos
brasileiros e que marcam ainda hoje o entendimento e o comportamentodos
cidadãos, tanto de direita quanto de esquerda: Gilberto Freyre, Casa
Grande e Senzala (1933); Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do
Brasil (1936) e Raymundo Faoro, Os Donos do Poder (1958). São
autores com diversas edições até em outros idiomas, adotados por praticamente
todas as universidades do Brasil e algumas no exterior que aprendemos a
respeitar e a admirar. Servem ainda à interpretação dominante da realidade no
Brasil. Refletem, contudo, claramente, a vitória do liberalismo
conservador, e que leva à colonização, inclusive do pensamento crítico no
Brasil.
O sociólogo teve a oportunidade de desfrutar de um olhar distanciado, a partir da Alemanha e dos Estados Unidos, onde foi aluno e professor, e pôde observar de longe o País. Jessé ameniza as críticas a Gilberto Freyre, a quem atribui a criação da matriz identitária brasileira, mas não perdoa Sérgio Buarque. Considera-o responsável por ter criado, a partir da herança das humilhantes relações sociais no escravagismo, a ideia do tal “homem cordial”, semente cultural da sociedade desigual e perversa que se entranhou na alma do brasileiro, como uma continuidade da sociabilidade que sucedeu à abolição.
Segundo ele,
caberia ao antropólogo Roberto da Mata arrematar as intenções de
Buarque, instituindo a síndrome do “vira lata” – sentimento de inferioridade –,
uma distinção social desprezível. Teriam eles naturalizado este
perfil para o brasileiro, a partir da escravidão. Por isso, a
desigualdade constitui-se em traço fundamental da sociabilidade brasileira.
Souza não dá
tréguas também a Faoro por institucionalizar a noção de
“patrimonialismo”, vinda lá da colonização ibérica, e que abriga por
aqui o homem corrupto, gerando o “jeitinho brasileiro”. Ambos o teriam ajudado
a identificar o que chamou de “os donos do Poder”, vindo desembocar na Lava
Jato e em uma mídia hegemônica que procura dar vida a um aprendizado
societário (cultural) simbólico deprimente, pervertido e
subserviente. O atraso do Brasil para Faoro estaria no Estado, e não no
mercado, esse ente supostamente invisível, omitido, por meio do qual circulam
os interesses privados, confundindo-se com o interesse público. O
Estado é o seu negócio, alerta.
Com relação
aos conflitos de classe no Brasil, diz que privilégios ,
preconceitos e alianças dão configuração a um padrão histórico,
refletindo apenas discordâncias efêmeras entre políticos, partidos e
intelectuais. A classe média pressionada, de um lado, pela atração
do capital que não lhe pertence e sob pressão da pobreza, de
onde veio, serve cabisbaixa de ponte para legitimação das
fantasmagóricas forças do mercado . Nesse espaço
transitam a alternativa dos morenos (mulatos), a quem a mídia acena
cinicamente com um charme emancipador, de fato antropofágico e caricaturado.
Desnorteados historicamente,
estes segmentos médios emancipadores comportariam fraçõesdistintas de classe
que vão de liberais, protofascistas, expressivistas revolucionárias,
domadas pelo capital financeiro, e a crítica aflorada da
pobreza e da humilhação social. Não se entendem, embora sejam elas que
caracterizam a esfera pública, descritas como sujeitos privados com
opinião própria. Por aqui, tudo seria, entretanto, mediado pelo mercado
oligarquizado, distribuído entre interesses do capital e dos atravessadores.
A classe média é
o capataz. Adiciona a noção de meritocracia. Colonizada, a classe média
funciona como ferramenta, e até como arma, contribuindo para o
aprofundamento da demonização do Estado. Esta servidão é,
portanto, instrumental. Ela não é parte. Não tem autonomia, mesmo
estando no Poder. Seus esforços são limitados por patamares
invisíveis de tolerância da classe dos endinheirados. E, assim, o mercado se
apropriaria do que seria a esfera pública – o difuso poder da sociedade e do
cidadão.
É a democracia que a escravidão legou ao País. No fundo, o brasileiro é comandado por uma hierarquia de valores, no dia a dia, que se inicia dentro de casa, passa pela escola e se estende por meio da grande mídia – concessão pública – que, disfarçadamente, lhe traçam um perfil de vira-latas. O passado do brasileiro – intocado até hoje, observa Jessé – é o herdado das relações sociais na escravidão: despreza o negro e o pobre e tolera o mulato, submetidos na cotidianidade a um distanciamento covarde e silencioso, que a história vai digerindo no processo de colonização da esfera pública, por meio de falsas noções e a imprecisão de conceitos científicos difundidos na vida social. Ninguém nasce imbecil. É feito idiota. Só a pandemia pode resgatar o brasileiro.
*Aylê-Salassié F. Quintão, Jornalista e professor
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