Ruan
de Sousa Gabriel | O Globo
SÃO
PAULO - Numa carta a um camarada do Partido Social-Democrata alemão,
remetida em 1884, um ano após a morte de Karl Marx,
Friedrich Engels comentou sua prolífica colaboração com o autor de "O
capital" e referiu a si próprio como "o segundo violino". Em
outra carta, escreveu: "Marx era um gênio; nós, no máximo, tínhamos
talento". A modéstia de Engels contribuiu para cristalizar sua imagem como
a de um mero ajudante que pagava as contas enquanto seu amigo se empanturrava
de dialética. Tal imagem, contudo, cai por terra sob uma análise mais robusta.
Engels, cujo bicentenário de nascimento é comemorado neste sábado (28) — a data
está sendo lembrada com lançamentos de obras importantes dele e sobre ele —,
era um revolucionário dedicado e um teórico de primeira linha, que ainda anima
estudiosos do marxismo, do feminismo e da ecologia
Quando publicou o livro "Engels, o segundo violino", em 1995, o historiador Osvaldo Coggiola, professor da Universidade de São Paulo (USP), quase optou por outro título para afastar a ideia de que ele fosse só um coadjuvante: seria "Engels, o General". O interesse de Engels por estratégia militar lhe rendeu esse apelido na casa de Marx. Autor de uma elogiada biografia de Engels, publicada em dois tomos (1920 e 1934), e cuja edição condensada a Boitempo lança agora no Brasil, o alemão Gustav Mayer especulou que as metáforas militares às quais Marx recorria em seus textos eram influência do "General". No ano que vem, a editora publica os textos da dupla sobre a Guerra Civil Americana (1861-1865).
Segundo
Coggiola, Engels "tinha ideias próprias e às vezes se adiantava a
Marx". Em 1844, ele já escrevia sobre economia política enquanto o outro
ainda fazia a crítica da filosofia .
—
Engels era um teórico com todas as letras. É errado imaginar Marx e Engels como
uma dupla caipira, na qual Marx é o Zezé Di Camargo, com a voz afinada, e
Engels é o Luciano tocando a viola, ou melhor, violino — compara Coggiola.
Nascido
numa família de industriais alemães, Engels frequentou a universidade esporadicamente,
mas era um autodidata competente. Trabalhou na fábrica da família em
Manchester, na Inglaterra, até amealhar fortuna suficiente para sustentar a si
próprio e a Marx e ainda contribuir para as lutas operárias. Conhecia de perto
o proletariado e, em 1845, três anos
antes do "Manifesto comunista", escreveu "A situação
da classe trabalhadora na Inglaterra". Depois da morte de seu camarada,
editou o segundo e o terceiro volumes do "Capital". Em dezembro, a
Expressão Popular lança "Cartas sobre 'O capital'", reunião da
correspondência dos dois amigos entre si e também com outros revolucionários
acerca da obra-prima do materialismo dialético.
Segundo Ricardo Musse,
do departamento de Sociologia da USP, Engels não apenas contribuiu com a
elaboração da teoria marxista (na década de 1840, ele e Marx escreveram textos
incontornáveis a quatro mãos), mas também para convertê-la na política adotada
pelos partidos operários, que, à época, dividiam-se em seguidores da dupla
alemã, dos anarquistas e de outras correntes socialistas.
—
Engels é um formulador da teoria e da prática marxista — diz Musse. — Além de
divulgar o marxismo, escreveu textos importantes, como sua
"Introdução" a "As lutas de classe na França de 1848 a
1850", de Marx, que influenciou as principais vertentes políticas
marxistas do século XX: a teoria da revolução de Lênin, a teoria da hegemonia
de Gramsci e a social-democracia.
Feminismo
e ecologia
Para
a socióloga Maria Lygia Quartim de Moraes, Engels não era nenhum "segundo
violino", apenas "modesto". E sempre atual.
—
Engels foi fundamental para nós, feministas dos anos 70. Em "A origem da
família, da propriedade privada e do Estado", de 1884, ele liga a opressão
da mulher à propriedade privada — explica Maria Lygia. — No século XIX, a moda
era o pensamento abstrato, e os textos dele têm um trato com dados da
realidade, que a contemporaneidade aprecia. Ele também trata com lucidez da
ecologia.
Os
estudos de Engels sobre as ciências naturais, realizados entre 1873 e 1886, só
foram publicados em 1925, como "Dialética da natureza", recém-lançada
pela Boitempo. Segundo a pesquisadora Laura Luedy, da Unicamp, Engels
ambicionava organizar as as descobertas empíricas numa teoria e desbancar a
pretensão de "isenção" da ciência .
—
Engels apontou as consequências nefastas da dominação da natureza com vistas à
acumulação continuada de capital, e defendia que o conhecimento das leis da
natureza deveria ser aliado a uma revolução do modo de produção e da ordem
social — observa Laura. — Nos anos 80, a centralidade da ecologia no projeto
marxista foi reconhecida, sobretudo, pela escola da ruptura metabólica" e
a "ecologia-mundo", que recuperam as teses de Engels sobre dialética
e ordem natural.
O texto "O papel do trabalho na hominização do macaco", incluído na "Dialética", no qual Engels junta o marxismo e a Teoria da Evolução de Charles Darwin, é um exemplo de que ainda soa bem a música do "segundo violino". "Não fiquemos demasiado lisonjeados com nossas vitórias humanas sobre a natureza", alertava Engels. "Esta se vinga de nós por toda vitória desse tipo".
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