quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Mudar polícias traz risco para a democracia – Opinião | O Globo

Propostas que esvaziam subordinação da segurança aos estados são parte do projeto de poder de Bolsonaro

O apoio do presidente Jair Bolsonaro a dois projetos que alteram a organização das Polícias Militar e Civil, para reduzir o poder que os governadores têm sobre ambas, não é apenas uma manobra para o presidente ampliar o apoio com que já conta nas corporações, principalmente na PM. Mais do que isso, representa um risco institucional seriíssimo de que as polícias possam constituir um poder paralelo sob a influência de Bolsonaro. É um perigo para o estado democrático de direito e toda a sociedade.

O ex-capitão sempre procurou atrair o apoio de PMs e militares de baixa patente, com a promessa de medidas populistas. Como fez há pouco, em visita à central de abastecimento de São Paulo (Ceagesp), estatal federal, ao anunciar que policiais militares, fardados ou não, passariam a ter desconto de 20% dos comerciantes. Comportou-se como representante sindical desses servidores públicos armados ao longo dos 28 anos em que integrou o baixo clero da Câmara. Continua a comportar-se no Planalto.

É inequívoca a adesão que conquistou nessas categorias. Entre os praças, 41% acessam e interagem em espaços bolsonaristas na internet, revelou pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e da Decode. Desses, 16% navegam em ambientes radicalizados. Entre os oficiais, tais números são, respectivamente, 35% e 18%. Como presidente, Bolsonaro parece interessado em obter dos policiais bem mais do que votos. Os números alertam para a possibilidade de novas insubordinações, como a que aconteceu ano passado durante a greve da PM no Ceará.

Bolsonaro se recusou a chamar de “motim” a rebelião cearense. Em 13 dias de paralisação — proibida pela Constituição —, policiais desobedeceram às ordens para voltar ao trabalho. Houve 240 assassinatos no estado. Como agiriam outros policiais diante de governos estaduais com menos poderes?

Várias das mudanças propostas na Câmara refletem só o corporativismo de costume. É o caso das que criariam, na PM, postos semelhantes aos da hierarquia militar: tenente-general; major-general e brigadeiro-general (hoje, a patente mais alta é coronel). Ou da inevitável melhoria no soldo. Mas a transformação da PM numa espécie de milícia privada a serviço do bolsonarismo parece ser o objetivo implícito.

Com a intenção de reduzir o poder dos governadores, comandantes-gerais e delegados-gerais passariam a ter mandato de dois anos. Na PM, o governador escolheria o comandante numa lista tríplice apresentada pela própria corporação. Na Polícia Civil, o chefe seria um dos que estão no topo da carreira. A destituição do comandante da PM teria de ser “justificada e por motivo relevante devidamente comprovado”. Na Polícia Civil, teria de ser aprovada na assembleia ou câmara distrital.

Bolsonaro flerta com a rebelião trumpista nos Estados Unidos e diz que algo “pior” acontecerá aqui se perder em 2022. Projetos que sintonizariam o comando das polícias com seus desejos não podem ser aprovados. As implicações extrapolam a segurança pública. Ameaçam a própria democracia.

Saída da Ford do Brasil resulta da insistência em políticas erradas – Opinião / O Globo

Protecionismo e subsídios jamais foram capazes de trazer ao país áreas estratégicas das montadoras

Não há como considerar boa notícia o fechamento das fábricas da Ford no Brasil, com a extinção de 5 mil dos 6,2 mil empregos gerados aqui. Mas é preciso entender a decisão num contexto maior. Mais que resultado da crise atual ou de erros cometidos pelo governo Jair Bolsonaro, ela deriva da visão equivocada que todo governo brasileiro sempre teve em relação às montadoras, desde pelo menos Juscelino Kubitschek: conceder proteção, agrados e subsídios para que elas construam fábricas aqui.

Só para a Ford, estima-se que tenham sido concedidos US$ 20 bilhões ao longo dos anos. A indústria automotiva é de longe a mais protegida do país. Um estudo do Ipea revela que a tarifa efetiva sobre automóveis era da ordem de 200% até 2010, quando havia mais de 20 montadoras por aqui (depois caiu a “apenas” 90%). Mesmo assim, o setor já apresentava dificuldades para competir com veículos importados da China, do Japão ou da Coreia do Sul.

Quando o governo Dilma criou o programa Inovar-Auto, o objetivo era ampliar a eficiência com novas tecnologias. O resultado da proteção concedida à produção local foi o oposto: fábricas operando a 50% da capacidade só para fazer jus a subsídios — e um enorme custo de oportunidade com capital alocado nelas, em vez de irrigar negócios mais produtivos.

Depois de julgado ilegal pela OMC, o Inovar-Auto foi enxugado e deu origem ao Rota 2030, outro festival de subsídio e proteção aprovado a toque de caixa em 2018, sancionado no governo Temer e em vigor até hoje. O objetivo desses programas, trazer ao Brasil o desenvolvimento das montadoras, jamais foi alcançado. Tanto que Mercedes e Ford não hesitam na hora de ir embora.

A política industrial que favorece a indústria automotiva só é mantida graças ao lobby poderoso que as montadoras sempre exerceram em Brasília. Os bilhões do governo destinados a proteger o setor tiram recursos de áreas bem mais importantes, como educação, saúde, infraestrutura ou saneamento.

O conforto de saber contar com novos subsídios quando necessário sempre contribuiu para que as montadoras fossem coniventes com a estrutura de impostos distorcida, que faz do governo um sócio oculto na produção local — e contribui para tornar o carro brasileiro um dos mais caros do mundo. A reforma tributária que beneficiaria o setor como um todo vive sendo adiada.

É por isso que, na hora do aperto, a Ford escolhe manter suas linhas de produção em países de estrutura tributária menos perversa, como Uruguai ou Argentina. Eis o resultado da visão desenvolvimentista que prioriza o “conteúdo nacional”, a “produção local” e outros seres mitológicos, em detrimento de educação, conhecimento, tecnologia e produtividade.

Sai a Ford, ficam os caros incentivos – Opinião | O Estado de S. Paulo

Incentivos, crédito fácil e proteção tarifária proporcionaram tranquilidade às montadoras, mas com efeitos pouco visíveis em sua competitividade.

Sem grande surpresa, a Ford anunciou a decisão de encerrar a produção de veículos no Brasil, com o fechamento de fábricas em Taubaté (SP), Camaçari (BA) e Horizonte (CE). Políticos lamentaram e sindicalistas protestaram. Houve quem atribuísse a decisão da empresa a falhas do governo e à sua baixa credibilidade. Também houve quem chamasse a atenção para o ambiente de negócios no Brasil, marcado por problemas bem conhecidos, como tributação disfuncional, insegurança jurídica, excessos de burocracia e infraestrutura deficiente. Segundo o presidente Jair Bolsonaro, a empresa queria mesmo subsídios, embora nenhum de seus diretores tenha mencionado essa questão. Pouco se falou, no entanto, sobre o desempenho e sobre as condições de operação da indústria automobilística no Brasil.

Segundo o Ministério da Economia, o fim da produção da Ford no País é parte da estratégia global da companhia. Fábricas foram fechadas em outras partes do mundo, a atividade na América do Sul será reorganizada e a lista de produtos principais deve mudar. Novas tecnologias, novas normas ambientais, novos tipos de veículos e novas condições mundiais de concorrência impõem mudanças a toda a indústria de veículos.

Além de responder a questões internas, a nova política da Ford provavelmente leva em conta essas transformações no ambiente empresarial. De toda forma, o encerramento da produção de caminhões em São Bernardo do Campo (SP), no ano passado, foi um prenúncio de amplas mudanças. A decisão recém-anunciada torna-se ainda menos surpreendente quando se considera o desempenho da companhia, no Brasil, nos últimos anos, com prejuízos acumulados desde 2013.

Em vez de lamentar o fim de atividades de mais uma empresa, o governo deveria dar atenção ao desempenho da indústria, nos últimos dez anos, e examinar com cuidado a atividade do setor automobilístico. Dificilmente se encontrará outro ramo industrial tão favorecido pelo setor público. Entre 2009 e 2019 as fábricas de veículos ganharam incentivos fiscais da ordem de R$ 30 bilhões.

Estímulos foram concedidos, sem interrupção, pelos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro. Em 15 de março de 2019, quando o atual governo nem havia completado três meses, o secretário de Produtividade, Emprego e Competitividade, Carlos da Costa, assegurou ao Estadão/Broadcast a continuidade dos subsídios ao setor automotivo no Nordeste.

“Existe um regime especial, recentemente prorrogado, que viabilizou investimentos não apenas da Ford, na Bahia, mas também da Fiat-Chrysler, em Pernambuco, por exemplo. As empresas que utilizam esse regime contam com essas regras para a manutenção de seus investimentos”, disse o secretário. Poucos dias antes ele e executivos da Ford haviam conversado sobre o fechamento da fábrica de caminhões em São Bernardo do Campo. Havia a esperança, aparentemente, de preservação da unidade na Bahia.

Em outubro de 2020 o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei de prorrogação de incentivos fiscais a montadoras e fabricantes de autopeças em áreas menos industrializadas. Os benefícios foram destinados a investimentos no Nordeste, no Norte e no Centro-Oeste. A origem da lei foi a Medida Provisória 987, de junho de 2020.

Incentivos, crédito fácil e proteção tarifária proporcionaram tranquilidade às montadoras, mas com efeitos pouco visíveis em sua competitividade. O acordo automotivo Brasil-Argentina, renovado muitas vezes desde a virada do século, proporcionou conforto e poucos desafios. Com fácil acesso aos mercados argentino e da vizinhança, as fábricas instaladas no Brasil pouco se empenharam em competir em outras áreas. Em 2019, mesmo em crise, o mercado argentino absorveu cerca de um terço das exportações das montadoras. As vendas para a América Latina corresponderam a cerca de 85% do valor total. Mas nem a vizinhança é mais um território seguro, com a chegada dos chineses. Apesar dos incentivos, o setor continua pouco empenhado em disputar espaços no mercado global. 

A necessária resistência de Maia – Opinião | O Estado de S. Paulo

Presidente da República não pode se esquivar das responsabilidades do cargo.

Finalmente, depois de 24 meses no cargo, o presidente Jair Bolsonaro começa a encontrar a devida resistência ao modo como vem governando o País. Ao longo da semana passada, por exemplo, o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), fez declarações assertivas sobre o presidente da República.

No dia 9 de janeiro, Maia escreveu no Twitter: “Bolsonaro é covarde”. O presidente da Câmara referia-se a uma notícia da revista Veja com o título Bolsonaro culpa Pazuello por perda de popularidade e atraso da vacina.

Não cabe dúvida quanto à responsabilidade de Jair Bolsonaro pelo modo como o Ministério da Saúde vem enfrentando a pandemia de covid-19. Os dois ministros da Saúde, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, que pretenderam enfrentar o novo coronavírus de forma minimamente técnica e não aceitaram as ordens preconceituosas e negativistas do presidente da República foram sumariamente demitidos.

Para evitar novos incômodos, Jair Bolsonaro colocou o intendente Eduardo Pazuello na chefia do Ministério da Saúde. As condições eram claras: obedecer ao chefe, sem contestar. Além disso, sempre que quisesse, Jair Bolsonaro poderia repreender ou desmentir o intendente em público.

Em outubro de 2020, o intendente afirmou que o governo federal negociava com o Instituto Butantan a compra de 46 milhões de doses da vacina chinesa Coronavac. Imediatamente, Bolsonaro mostrou quem mandava. “Tenha certeza, não compraremos vacina chinesa”, disse. Não é de estranhar que o presidente tenha de ouvir agora coisas desagradáveis sobre seu comportamento.

Rodrigo Maia também reagiu à declaração de Bolsonaro de que, sem voto impresso em 2022, “nós vamos ter problema pior que os EUA”. O presidente referia-se nada mais nada menos que à invasão do Congresso americano por apoiadores de Donald Trump.

“A frase do presidente Bolsonaro é um ataque direto e gravíssimo ao TSE e seus juízes. Os partidos políticos deveriam acionar a Justiça para que o presidente se explique. Bolsonaro consegue superar os delírios e os devaneios de Trump”, escreveu o presidente da Câmara no dia 7 de janeiro.

Na mesma semana, ao comentar uma notícia do jornal Folha de S.Paulo (Brasil deixa de pagar banco do Brics e governo acusa Congresso), Rodrigo Maia escreveu: “Governo transferindo responsabilidade. É prática de um governo incompetente. É sempre assim”.

Um dos alicerces do regime democrático é a responsabilidade de quem exerce o poder. Por isso, é especialmente perniciosa a desinformação que tenta culpar um Poder por erros, confusões e omissões que são de autoria de outro Poder. A população tem direito a saber a verdade dos fatos. Só assim, poderá depois exercer conscienciosamente seus direitos políticos. A mendacidade é inimiga da democracia – que também é um regime de responsabilidade.

Diante de desarranjos populistas e autoritários, é muito bom que haja resistência da sociedade e dos partidos políticos que a representam. É também alvissareiro constatar a prontidão do Judiciário para proteger, quando acionado, a Constituição e o Direito. Mas é especialmente importante que também o Congresso, por meio de suas lideranças, se manifeste perante assuntos de tamanha relevância pública.

A política não pode se ausentar da tarefa de recordar os limites e responsabilidades do chefe do Executivo. Assim como toda autoridade num Estado Democrático de Direito, o presidente da República não pode se esquivar das responsabilidades do cargo, tampouco pode usar sua posição de destaque para proferir ameaças, explícitas ou veladas.

Houve quem se escandalizasse com as palavras de Rodrigo Maia. Afinal, os posts do presidente da Câmara no Twitter escancararam aspectos um tanto complicados do comportamento do presidente da República. A rigor, no entanto, escandalosa é a falta de contestação por parte de Jair Bolsonaro. Como já havia ocorrido em outras situações, o presidente Bolsonaro, que tanto gosta de falar, simplesmente se calou quando confrontado. Deu a entender que, apesar de suas dificuldades cognitivas, captou o fundamento das acusações.

Não basta voltar ao normal – Opinião | O Estado de S. Paulo

O pós-crise deveria ser mais que a volta à normalidade do baixo dinamismo.

Passado o grande choque de 2020, o mundo se recompõe, ainda ameaçado por novos surtos de covid-19, e o Brasil retoma seu lugar entre as economias menos dinâmicas e com menor potencial de crescimento. Depois de encolher 4,3% em 2020, a produção global deve crescer 4% neste ano e 3,8% no próximo, segundo as novas estimativas do Banco Mundial. O País deve avançar 3% em 2021 e 2,5% em 2022, recuperando-se lentamente do recuo de 4,5% no ano passado. Com ajuda emergencial, facilidades tributárias e muito incentivo ao crédito, o consumo e a produção industrial reagiram rapidamente a partir de maio. Mas é preciso muito mais que essa recuperação em V para levar a economia brasileira a uma posição melhor no quadro internacional.

A retomada inicial é a única demonstração de vigor econômico do Brasil, desde o início da crise, e nenhum resultado notável está previsto para os próximos anos. Com a forte reação depois do tombo de março-abril, o Brasil fechou 2020 com uma perda econômica bem menor que os 5,2% estimados em junho pelo Banco Mundial. O balanço geral da América Latina e do Caribe é bem pior, com recuo de 6,9%. Também os dados sanitários são especialmente ruins.

Embora abrigue menos de 10% da população mundial, a região teve cerca de 20% de todos os casos confirmados de covid-19 – e, além disso, há suspeita de ampla subnotificação. Em cerca de um terço dos países latino-americanos e caribenhos a contração econômica foi igual ou superior a 10%. Mas a região deve crescer 3,7% em 2021 e 2,8% em 2022, segundo o relatório de Perspectivas Econômicas Globais divulgado no começo da semana pelo Banco Mundial.

É mais fácil, no entanto, avaliar o desempenho e o potencial brasileiros quando se examinam os números de 26 países latino-americanos e caribenhos listados no documento. A contração econômica em 2020 foi maior em 21 desses países do que no Brasil. Mas 16 dessas economias devem crescer mais que a brasileira em 2021. No ano seguinte 18 deverão exibir crescimento maior que o do País.

A comparação fica mais informativa quando se consideram períodos anteriores à pandemia. Treze desses latino-americanos e caribenhos acumularam avanço maior que o do Brasil em 2018-2019. O número certamente cresce quando se acrescentam os anos de 2015 a 2017, por causa da recessão brasileira de 2015-2016. A tabela só apresenta, no entanto, dados a partir de 2018.

No Brasil, a recuperação do consumo e do investimento, iniciada em 2020, deve prolongar-se no começo de 2021 e garantir, segundo o relatório, 3% de crescimento. Isso dependerá da confiança e da manutenção de condições “benignas de crédito”. A expansão continuará desigual entre setores, com agricultura e indústria avançando mais que os serviços, como em 2020. Mas o impulso deve diminuir ao longo do ano, em parte por causa da retirada dos estímulos fiscais e monetários, e em 2022 o crescimento ficará em 2,5%.

O relatório pouco avança no exame das potencialidades e limitações de cada país. Fica longe das considerações, comuns em documentos do Fundo Monetário Internacional (FMI), sobre taxa de investimentos, eficiência da infraestrutura, formação e produtividade da mão de obra, integração internacional e competitividade. Mas os gráficos e tabelas são expressivos, evidenciando os contrastes entre a economia brasileira e as condições de produção e de crescimento de outros países.

Os 3% de expansão previstos para o Brasil em 2021 dependem, claramente, de condições especiais. Parte do impulso provém da recuperação iniciada em 2020 e, além disso, a base de comparação é muito baixa. Sem os estímulos, a atividade perde vigor e o crescimento econômico tende a recuar para 2,5%. Sem mistério: esse número é parecido com o potencial de crescimento estimado por economistas do mercado e de instituições multilaterais. A volta ao normal, para o Brasil, é a volta a uma condição de baixo dinamismo, incontornável sem reformas bem estudadas, sem investimentos e sem maior esforço de competitividade. Tudo isso é legível nos números.

A conta da eficácia – Opinião | Folha de S. Paulo

Mesmo abaixo da expectativa criada, dado da Coronavac aponta boa opção no país

Depois de números tornados públicos de modo um tanto descuidado pelo governo paulista, podem parecer decepcionantes os dados divulgados nesta terça-feira (12) que apontam eficácia de 50,4% da Coronavac contra a Covid-19.

A administração João Doria (PSDB) criou confusão desnecessária —e um risco em potencial para a credibilidade do imunizante— ao mencionar, na semana passada, duas taxas parciais de eficácia: 78% para casos leves (pacientes que precisam de atendimento em ambulatório) e 100% para moderados e graves (com internação).

O erro começou a ser sanado com uma nova entrevista coletiva, em tom mais técnico e menos político. Finalmente se conheceu, com fartura de esclarecimentos, a cifra mais ampla, que leva em conta também os casos muito leves, de infectados que tiveram sintomas mas não precisaram de médico.

Admitiu-se, ademais, que os 100% antes citados não têm maior relevância estatística, uma vez que se referem a episódios raros.

O que cientistas chamam de eficácia é uma taxa que mede a redução proporcional da incidência de Covid-19 entre as pessoas que foram vacinadas em pesquisa clínica, na comparação com o que acontece com indivíduos que receberam um placebo (grupo de controle).

O cálculo orienta as metas de vacinação para que se chegue à imunidade coletiva. Quanto menor a eficácia, mais gente precisa ser atingida para eliminar a doença.

Com uma taxa de 50%, o mínimo exigido pela Organização Mundial de Saúde contra o novo coronavírus, toda a população deve ser vacinada para que se chegue à chamada imunidade de rebanho.

Pfizer e Moderna anunciaram com cálculos diferentes eficácia em torno de 95% —o que significa necessidade de vacinar pouco mais da metade dos habitantes para uma proteção coletiva total.

No contexto brasileiro, porém, a primeira é importada e depende do armazenamento a -70ºC, inexistente na rede de frio do SUS. A segunda nem sequer consta das negociações do país, reflexo da imprevidência do governo Jair Bolsonaro.

Empregar, nesse cenário, uma vacina com 50,4% de eficácia —além de produzida no país e armazenável em geladeiras comuns, como as já disponíveis no aparato vacinal brasileiro— constitui boa opção para começar o enfrentamento da pandemia. Será o suficiente para que se reduza de modo expressivo a lotação dos hospitais.

Urge, portanto, que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) examine com senso de responsabilidade os dados apresentados. Se e quando comprovadas a segurança e a eficácia da Coronavac, o país precisa começar a recuperar o enorme tempo perdido até aqui.

Ford vai além – Opinião | Folha de S. Paulo

Fim de fábricas reflete mudanças no setor; ao governo cabe operar pela economia

O encerramento das atividades de uma grande empresa é necessariamente doloroso. Milhares de trabalhadores perdem seus empregos, e consumidores, seus produtos. O impacto se espalha, por vezes de modo terminal, entre fornecedores, investidores, credores, comércios e regiões adjacentes.

Tratando-se de uma companhia como a Ford brasileira, o evento ganha dimensões simbólicas e políticas. Uma das marcas principais da industrialização do país anunciou na segunda-feira (11) o fechamento de suas fábricas, e governos do presente e do passado têm sua responsabilidade escrutinada.

A experiência demonstra, entretanto, que intervenções do Estado destinadas a prolongar a longevidade de negócios resultam em mazelas ainda mais graves e duradouras. O setor automobilístico, aliás, também simboliza distorções da industrialização nacional.

A decisão da Ford decerto encontra motivos na estratégia particular da empresa, na situação de seu ramo de atividade, na conjuntura econômica e na condição estrutural do país —e governos, como norma geral, só deveriam interferir em favor das duas últimas.

Em fevereiro de 2019, a montadora já anunciara o fechamento da fábrica de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. Àquela altura estava claro que transformações profundas se aproximavam.

O setor como um todo se adapta a novas circunstâncias do mercado global —de mudanças nos hábitos dos consumidores às pressões por veículos não poluentes, passando pela ascensão dos aplicativos de transporte individual.

Desde períodos anteriores, de todo modo, está fadada à exaustão a política brasileira de subsídios e proteção à indústria, que resulta em produtos caros e custos para o erário. Hoje vigora o programa Rota 2030, de 2018, que substituiu o Inovar-Auto, considerado parcialmente ilegal pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

Aqui e agora, o governo de Jair Bolsonaro não deve fazer nada pela Ford ou outras empresas em particular. Tem pela frente, isso sim, enormes tarefas, até o momento negligenciadas, para a recuperação da atividade, a proteção da população mais vulnerável e a melhora do ambiente de negócios do país.

Vacinação, ampliação do Bolsa Família, abertura a importações, privatizações, reformas administrativa e tributária —há muito a fazer para evitar que o Brasil testemunhe mais desinvestimento.

Projeto de autonomia da polícia demanda debate amplo e público -  Opinião | Valor Econômico

Não se pode criar poder policial paralelo ao poder civil

As íntegras dos projetos de lei que pretendem dar maior autonomia às polícias militar e civil ainda não são conhecidas. Nesta semana, tomou-se conhecimento, por meio do jornal “O Estado de S. Paulo”, de algumas ideias que vêm sendo discutidas pelo governo federal com as corporações do setor de segurança. O debate intramuros de um assunto dessa importância e complexidade levanta desconfiança sobre as reais intenções de seus defensores. Como trata de segurança pública, a discussão deve ser pública, ampla e aberta.

Pelo que foi noticiado até agora, os projetos de lei alteram as estruturas das polícias, dando a elas maior autonomia administrativa e financeira. Determinam, por exemplo, mandato de dois anos para o comandante-geral da polícia militar e para o delegado-geral da polícia civil de cada Estado.

No caso de destituição, o governador teria que justificar o ato e o motivo teria que ser devidamente comprovado. Mesmo neste caso, a dispensa teria que ser ratificada pela respectiva Assembleia Legislativa, por maioria absoluta de seus membros.

O comandante-geral de cada Polícia Militar seria nomeado pelo governador a partir de uma lista tríplice apresentada pelos oficiais. Cada delegado-geral seria escolhido pelo governador entre aqueles de classe mais alta na carreira.

Os dois projetos não contemplam soluções específicas para os graves problemas de segurança pública que afligem os brasileiros, como, por exemplo, a eficácia do policiamento. Como disse o diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sergio de Lima, as propostas representariam, se aprovadas, a “blindagem” das corporações. “Esse projeto significa a blindagem definitiva e irreversível das polícias e a declaração de sua independência”, afirmou Lima ao Valor.

A Constituição atual diz que os membros das polícias militar e civil são militares dos Estados. E acrescenta que as polícias militares e os corpos de bombeiros militares subordinam-se, juntamente com as polícias civis e as polícias penais estaduais e distrital, aos governadores dos Estados e do Distrito Federal.

No Estado democrático de direito, todo o Poder emana do povo e em seu nome é exercido por representantes legitimamente eleitos. A autoridade máxima de um Estado é o governador, que foi eleito para isso, e ele deve ser o responsável pela segurança de seus concidadãos. Os projetos em discussão pelas corporações com o governo federal pretendem restringir o poder e a autoridade dos governadores, que passariam a não ter o controle sobre as forças de segurança.

Os projetos são vistos nas polícias como forma de defesa das corporações das ingerências e perseguições políticas. São preocupações legítimas e que devem ser analisadas, mas a solução para isso não pode ser a criação de um poder paralelo dentro dos Estados. O poder policial não pode se sobrepor ao poder civil; como determina a atual Constituição, a ele se subordina. As polícias militar e civil são apenas executoras de políticas públicas, definidas pelos governadores.

Outro aspecto da proposta que precisa ser considerado diz respeito à questão financeira. Um órgão que ganha autonomia quer, acima de tudo, definir o seu próprio Orçamento. Não existe autonomia efetiva sem independência financeira. Ao ganhar autonomia, as corporações policiais vão querer também definir suas estruturas de carreiras e suas remunerações, como já ocorre com outros órgãos públicos, que criam grande dificuldades para as gestões das contas públicas estaduais e federal. É bom lembrar que outras corporações de servidores também defendem a autonomia da Polícia Federal e da Receita Federal.

Alguns analistas acreditam que as propostas em discussão no Legislativo estariam em sintonia ideológica com o governo Jair Bolsonaro, que sempre procurou atender às reivindicações das corporações militares. Desde a campanha eleitoral de 2018, Bolsonaro adota um discurso de valorização das forças de segurança e de maior endurecimento das ações policiais.

Quaisquer que sejam as motivações ideológicas das propostas de autonomia das polícias militar e civil, há limites que não podem ser ultrapassados. Não se pode criar poder policial paralelo ao poder civil e a autoridade máxima, em cada Estado, é a do governador, eleito pelo povo. Qualquer proposta que não respeite esses preceitos constitucionais não merece ser apreciada.

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