Eis
um combate revelador de um permanente negacionismo hierárquico cujas raízes
estão centradas na crença segundo a qual as pessoas poderosas canibalizam a seu
gosto as regras e estão acima da lei
A
eleição é um evento de formidável significado político nas democracias. O
ritual eleitoral livre e individualizado equivale à morte paradoxalmente
programada de um rei. Ele renova o sistema político e acaba com o exclusivismo
dos arranjos de familismos e abala os ardis de classe, dando sentido a
associações voluntárias que ajudam a enfrentar problemas. Somente na democracia
há uma entrega do poder político ao julgamento do povo.
Tal
paradoxo torna-se ainda mais poderoso num planeta permeado por redes digitais –
uma jamais vista capacidade de livre expressão, o que facilita tanto a verdade
quanto a intriga e a mentira. O fato inegável, contudo, é que a eleição livre é
a melhor vacina contra os golpes cujo primeiro ato é eliminá-la.
A
dúvida de quem vai ser o mandatário por meio eleitoral é a prova viva do valor
da igualdade inibidora do execrável “você sabe com quem está falando?”, porque
a competição eleitoral suspende e separa indivíduos de cargos, revelando que
estes são fixos, mas pessoas e contextos – eis o centro do surto trumpista e de
todos os autoritarismos – passam.
As
estruturas eleitorais neutralizam hierarquias e exigem igualdade. No fundo,
elas equilibram esses dois polos descompassados, mas acasalados da vida social.
Elas substituem um obrigatório “sabe com quem está falando?” por um realista
“quem você pensa que é?”, numa transição verdadeiramente revolucionária quando
se vai do personalismo patriarcal para a impessoalidade de um igualitarismo
universalista – esse marco da vida moderna.
A eleição, diz um ativista amigo e querido, não é o emplastro de Brás Cubas, mas renova a esperança de liberdade, igualdade e justiça.
Não
foi, pois, por acaso que o inusitado, criminoso e brutal ataque ao Parlamento
americano, uma agressão insuflada pelo próprio presidente Trump, tenha sido
iniciado explicitamente no processo eleitoral.
Ironicamente,
foi o mecanismo eleitoral singularmente americano com as suas duas etapas –
voto universal centralizador e de massa; e voto num colégio eleitoral
federativo e qualitativo –, desenhado para inibir populismos, que, nesta
eleição, trouxe à cena o antidemocratismo violento e, no limite, fascista, de
Donald Trump. Foi justo na segunda etapa eleitoral que a narrativa de fraude
ganhou credibilidade.
Daí,
encarnou-se a encrenca de Trump contra a realidade das contagens dos votos numa
rejeição surrealista de números e do igualitarismo competitivo. Encrenca
surrealista, típica da má-fé que tão bem conhecemos. Um “morde e assopra” que
tipifica a nossa vida pública e permite escolher não escolhendo tanto a
democracia quanto o autoritarismo; tanto o salvador da pátria quanto a lei,
conforme tenho reiterado na minha obra.
Eis
um combate revelador de um permanente negacionismo hierárquico cujas raízes
estão centradas na crença segundo a qual as pessoas poderosas canibalizam a seu
gosto as regras e estão acima da lei. Tal é justamente o caso de Donald Trump
com a diferença de que, nos Estados Unidos, uma profunda tradição do “governo
da lei” reafirmou que não há ninguém acima de qualquer suspeita.
Sobretudo
quando se trata de um presidente contraditório, mentiroso e insuflador de
insurreição. A força do domínio da lei surgiu abertamente quando o Senado
reafirmou que, nas democracias, os juramentos não são feitos a pessoas, mas ao
país e à Constituição.
Trump
foi derrotado pela igualdade, essa discreta dama imprescindível às democracias.
A despeito dos seus fanáticos seguidores, ele foi vencido pelo princípio de
que, quanto maior o privilégio do cargo, mais o seu ocupante é um devedor
permanente da honestidade e da transparência.
O
que nos leva a um assunto inibido quando se trata de discutir o lugar de uma
superpotência num mundo globalizado. Refiro-me à capacidade de o presidente dos
Estados Unidos poder emitir moeda, construir muros, afetar a economia mundial e
– valha-nos, Deus! – de ter o poder pouquíssimo discutido, mas absurdo de, num
apertar de botões, destruir o mundo!
Nesse
contexto, vale discutir se as regras de governabilidade que anularam, com
justiça, o poder dos reis e dos papas, seriam ainda adequadas a presidentes e
líderes de países dotados de artefatos nucleares. Lembro que, até a metade do
século passado, imperadores, reis, ditadores e tiranos tinham poderes sem
dúvida absolutos sobre seus povos, mas não tinham a capacidade de – como Deus
ou algum maluco, a Oeste ou Leste, onipotente – destruir o planeta!
Para
terminar com essa crônica um tanto bíblica, temo que, quando a vacina for
libertada das sabotagens burocráticas, todos estaremos doentes ou mortos pela
tal “gripezinha”.
*É antropólogo social e escritor, autor de ‘Fila e democracia’
Nenhum comentário:
Postar um comentário