quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Paulo Delgado* - Incógnitas e lutas caducas

- O Estado de S. Paulo

O Brasil parece renunciar ao amor por seu povo. Não há melhores a imitar

Aos trancos e barrancos, em violentas erupções eles governam. Se o país está quebrado, é hora de comprá-lo. Barão de Rothschild vaticina: a riqueza troca de dono quando há sangue nas ruas. Os mercados lucram com a miséria humana, explica o New York Times, porque as bolsas estão bombando na pandemia.

Como o presidente libera sentimentos que ninguém quer ver e em geral destrói todos os que cometeram o erro de nele acreditar, há alguma coisa no ar que não fecha. Declarar a insolvência do Brasil sabendo da manipulação da descrença que a isso se segue permite supor que alguém já lhe deve mais do que ele jamais poderia dever.

Brasil e EUA vivem a moléstia do vitorioso mal-agradecido que debilita a glória de presidir o país pela mortificação pessoal de ocupar cargo acima de seu nível. Porque esse negócio de dizer que não pode fazer nada quer dizer que não pode fazer tudo em regime legal. Alusão ao mundo subterrâneo, motor da palhaçada ultrajante no Capitólio querendo produzir torpor na democracia.

A democracia não tem a velocidade maldosa do impune. Não detém sua esterilidade petulante, nem suaviza a dureza da pedra ou incute valores morais em atitudes destrutivas. Basta uma declaração para resumir a aversão ao diálogo, como campeão de lutas caducas.

Dois países, um mole, outro desarranjado, assistem ao êxtase de líder errado, num concurso de paixão sem razão e capacidade de frear. Impeachment é por crime de responsabilidade. De irresponsabilidade é interdição, desqualificação por circunstância. Como a sorte lançou votos em seu caminho, drenar o pântano é aposentar quem não entende as dificuldades da vida normal e fazer regredir a preferência pelo conservadorismo político desinformado e pelo liberalismo tosco.

O poder não se comove. Quando diz decência pode significar indecência. A confusão se amplia. O excesso de estimulação que recebe o governante produz um vazio extremo no governado que confunde poderoso como alguém de ego forte. Negativo. Forte é a circunstância do ambiente facilitador em que vive. A má autoridade não injuria ou zomba de ninguém. A agressão vem do lugar que ocupa.

Há uma inversão na ordem. Dois países gigantes perdem a fé na sua força por não saberem lidar com problemas pessoais de presidentes e o ambiente de fúria e inveja que propagam. Muitas autoridades trazem de casa seus costumes e ampliam a confusão entre o público e o privado.

O Brasil vive uma desnecessidade de poder. Como se os anéis justapostos do arbítrio, da criminalidade e do delito produzissem uma atividade motora que vai do indivíduo à autoridade, do crime ao tribunal, sem distinção ou limite. Quem julga o juiz em nossa pátria? Quem detém do governante o delito? Quem protege a paz do cidadão? As instituições começam a não desempenhar papel relevante na vida pública, com mãos soltas para executar o que for.

Erra também o Banco Central se deixa sua independência ser entendida como garçonnière de bolsa e suas fantasias. Alienação baseada em comodismo acadêmico supersticioso: considerar o mercado amante volúvel, sem emprego e produtividade. E supor economicamente irracional pensar também em metas de confiança, pleno emprego, crescimento econômico e estabilidade da moeda. Sozinha e paparicada, a moeda especulativa, dogma do iliberal brasileiro, é uma desmaterialização produtiva, que permite que valorização no mercado de ações seja desvinculada da economia real. A economia financeira do risco e som de canhão acha que a paz dá prejuízo.

Assim começa janeiro. A terceira pré-estreia desse filme de quatro anos. E a bagunça geral vai produzindo um País sem testemunha que não sabe que a sucessão no Congresso é a principal decisão econômica de 2021. Ou continuaremos a assistir a bolsa rica e bolso pobre; especulação subir, produção sumir; o empresário investir, o imposto comer; o jovem crescer, o emprego desaparecer. Agravado pelo erro de querer desvincular empresa e escola nas políticas para jovens vulneráveis. Trabalho sem estudo é gasolina na evasão escolar, ponte inútil para o futuro.

O Brasil parece renunciar ao amor pelo seu povo. Não há melhores a imitar. Desde 1926, de Araraquara Mário de Andrade alertava: “Se três brasileiros estão juntos estão falando porcaria... Pode ser que os outros sejam mais nobres. Mais calmos certamente que não. Mas não tenho medo de ser mais trágico... O presente é uma neblina vasta. Hesitar é sinal de fraqueza, eu sei. Mas comigo não se trata de hesitação. Trata-se de uma verdadeira impossibilidade, a pior de todas, a de nem saber o nome das incógnitas”. Enfim, estão aí o ano novo e o mesmo presidente sem horizonte.

Não é a primeira vez que o Brasil vive o amor devorante do narcisista que parece deixar-se amar para levar do outro os esforços em proveito de si mesmo. Diante do deboche e da audácia releiam Macunaíma. Para pular cedo da canoa, dar uma chegada até a foz do Rio Negro, buscar a consciência ali deixada e ajudar a tirar do buraco o ano novo.

*Sociólogo. 

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