Com
o sequestro do Orçamento por emendas parlamentares de valor crescente de que
vale um presidente da República?
O
presidente Jair Bolsonaro ganhou, mas não levou. A eleição na Câmara dos Deputados
bifurca o futuro do país entre dois rumos, um ruim e o outro, péssimo. Um
deriva de um presidente que comete estelionato eleitoral na aliança com o
Centrão de olho na contestação do resultado de 2022. Pode fazê-lo agitando o
voto impresso e atiçando a reação de praças e sargentos que cultiva nas tropas
fardadas ou do bolsonarismo raiz que armou até os dentes.
As
instituições que sobrarem podem impedi-lo? Sim, mas sequestrarão o país. Ou
melhor, aumentarão um resgate inflacionado ao longo dos últimos vinte e poucos
anos. No Congresso o processo foi inebriante. Basta ver, por exemplo, o que
aconteceu com as emendas parlamentares. No início deram barato, mas viraram a
dependência de uma droga crescentemente abastecida pelos impeachments,
ameaçados e concretizados.
A
prisão do chefe do tráfico de emendas levou à ascensão de outras lideranças,
algumas que nasceram na boca, outras que a frequentam pelas beiradas e ainda
aquelas que a toleram pelo poder. Com maior ou menor dependência, hoje não
sobrevivem sem a droga.
O vício, por óbvio, é paulatino. Em meio aos arranjos parlamentares que se sucederam ao impeachment do primeiro eleito da Nova República e à posse de um vice desconfortável no cargo, sete parlamentares foram pegos com a botija. Os anões do Orçamento vagaram insepultos no governo Itamar Franco e permaneceram influentes até outro dia. O esquema, porém, se institucionalizou.
Os
parlamentares passaram a ter uma cota no Orçamento em 1995, primeiro ano de
Fernando Henrique Cardoso. As emendas não eram impositivas e o presidente
navegava no arrocho com uma coalizão transatlântica.
Na
era Luiz Inácio Lula da Silva a insatisfação só começou com o fim da esbórnia
nas estatais. Ainda por cima, o financiamento privado de campanha havia sido
proibido. Os fundos eleitoral e partidário foram turbinados, mas isso não
bastava.
Incomodados
com o gargalo mais estreito nas estatais no governo Dilma Rousseff, o Congresso
aprovou a imposição de emendas individuais no início de um mandato que já se
prenunciava interrompido. Naquele ano (2015) as emendas somaram R$ 9,7 bilhões.
A
imposição deu barato, mas logo os parlamentares estavam em busca de novas
alegrias. Em 2016 sintetizaram as emendas de bancada. No mesmo ano a boca
colocou no Palácio do Planalto um velho conselheiro. Com ele, ascendeu na
Câmara o representante de uma das lideranças que tolerava a droga pelo poder.
No ano seguinte, quando as conversas de Michel Temer no subsolo do Alvorada
vieram à tona, as emendas individuais e de bancada somaram R$ 15,2 bilhões.
Foi
quando a família brasileira, horrorizada, resolveu dar um basta nesta
inebriante orgia com a eleição para a Presidência da República de um
representante das beiradas do tráfico. Não faltaram avisos de que se tratava de
um macomunado com os esquemas policiais que dão proteção ao crime. Sucederam-se
evidências escancaradas de que o escolhido era um engodo. Com isso, surgiu, em
2019, uma oportunidade de também tornar as emendas de bancada impositivas.
Gerida no atacado, a boca foi tomada pelo varejistas experientes que esta
semana, finalmente, acabariam por assumir o poder.
Ninguém
sabia que uma pandemia estava por vir, mas os sinais de que o varejo da boca
tomaria o poder ficaram evidentes no fim de 2020 com duas outras modalidades.
Foram inseridas as emendas das comissões temáticas do Orçamento e aquela que
ficou conhecida como “emenda do relator” e designava plenos poderes àquele que
reelabora a peça orçamentária na Comissão Mista. Este ano se tornaria um dos
coordenadores da campanha do novo presidente da Câmara.
Tratava-se
de um alucinógeno nunca visto na Casa. A pedida inicial foi de R$ 30 bilhões.
Depois de tonitruantes negociações, ficou pela metade. Ainda assim, somadas as
emendas de comissão, individuais e de bancada chegava-se quase àquele patamar:
R$ 29 bilhões.
Garantidas
mesmo, com execução assegurada pela Constituição e desobediência sujeita a
crime de responsabilidade do presidente da República, só havia as emendas
individuais e de bancada que, no Orçamento planejado para 2020, somavam R$ 15,4
bilhões. Acrescidos aí os fundos eleitoral e partidário chegava-se a R$ 18,4
bilhões. A boca, definitivamente, havia se tornado um lugar mais aprazível do
que o Palácio do Planalto onde, espremendo-se todas as rubricas de investimento
(excluídas as estatais) chegava-se a R$ 19,5 bilhões. O valor, ao contrário
daquele das emendas, está sujeito a contigenciamento.
É
o melhor dos mundos. Os parlamentares governam num regime presidencialista com
execução orçamentária garantida sem responderem pelos seus gastos.
Àquela
altura, a Covid-19 já estava incubada. Com a aprovação do Orçamento extra de
combate à pandemia, a boca entrou no isolamento das sessões remotas, mas na
vida real, foi à guerra. Moveu-se por droga de efeito multiplicador que não
deixa marcas no seu usuário, a emenda "extra orçamentária".
A
verba de um mesmo ministério é prometida para três parlamentares diferentes. A
promessa não é registrada oficialmente mas chega à ponta, ou seja, a Estados e
municípios. Prefeitos, que se viram acossados por parlamentares a reivindicar
transferências federais, foram obrigados a dividir compras de testes e
medicamentos entre dois ou três fornecedores indicados por parlamentares.
A
boca se refastelou. Um dos integrantes, acocorado para uma revista, mostrou que
a droga não tem limite para degradar o corpo humano. Uma distribuidora do Piauí
quinze dias atrás foi flagrada numa operação policial fornecendo medicamentos e
notas frias ao gosto do freguês. Deputado e senador com avião é o novo normal.
As
emendas que, nos anos 1990, faziam a alegria de parlamentares com R$ 1 milhão,
agora somam nove dígitos. E o pior é que a festa acontece no meio do mandato.
Parlamentares que usam o apurado para atender ao eleitor serão cobrados em 2022
a manter o mesmo patamar de entregas sob o risco de não se reelegerem.
O capitão alimenta a boca porque aposta que o Brasil é o baile funk no qual ele, um dia, vai poder chegar com sua tropa e instituições nada farão porque estão funcionando. No melhor das hipóteses, será derrotado numa eleição. E o vencedor, vai poder fazer o quê?
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