Folha de S. Paulo
Numa epidemia, uma das principais linhas de
defesa coletiva é o medo
Sempre que escrevo sobre a cloroquina,
leitores simpáticos ao uso "off-label" do fármaco me contestam. Até
aí, normal. Mas usam muito amiúde um argumento que, penso, merece reflexão.
Dizem que a droga deve ser prescrita, entre outras razões, porque a ciência não
oferece outro tratamento contra a moléstia.
A afirmação não é 100% verdadeira, mas
deixemos passar. A base do argumento é a ideia de que os médicos precisam fazer
alguma coisa, mesmo quando não há nenhum remédio efetivo disponível. Soa
estranho, mas a tese não é absurda.
O efeito placebo, afinal, é um fenômeno real e poderoso. Numa série de afecções, o simples fato de o paciente julgar que está recebendo tratamento já tem impacto positivo para a cura.
Se os placebos são assim tão bacanas, por
que a medicina não os utiliza mais? A discussão aqui se torna ética. Apesar de
meus pendores consequencialistas, defendo uma medicina bem kantiana, em que a
transparência nas comunicações e a autonomia do paciente possam se materializar
em grau máximo.
Nesse paradigma, o médico, quando diretamente
questionado, não tem direito de mentir nem pode impor ao paciente nenhuma
terapia com a qual este não concorde (exceção feita a quadros de psicose). O
uso do placebo nubla em algum grau a transparência.
Admito, porém, que meu paradigma não é universalizável.
Há pacientes que preferem ser poupados de más notícias e de decisões difíceis.
O bom médico é justamente aquele tem sensibilidade para perceber quanta
informação o paciente quer receber e dispensá-la na dose exata.
Voltando à cloroquina, o efeito placebo funciona mais para moléstias com forte componente psicossomático e quase nada para doenças infecciosas, nas quais pode ser um risco. Numa epidemia, uma das principais linhas de defesa coletiva é o medo, que faz com que as pessoas evitem situações de contágio. Sugerir tratamentos ilusórios mina essa defesa.
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