sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Ruth de Aquino - Armas, mentiras e videoteipe

O Globo

Ele era só pré-candidato à Presidência. Em cima de um carro de som em Goiânia, Jair Bolsonaro ensinou uma criança a fazer com a mão o gesto de uma arma. Uma cena asquerosa. A menininha com vestido rodado apontava uma arminha para as pessoas, no colo do aspirante ao Planalto, em julho de 2018. Vale a pena ver de novo.

Deu no que deu. De 2019 até agora, Bolsonaro tem feito de tudo para despejar armas pesadas nas ruas e nos lares, facilitar importação de fuzis e munição, reduzir o controle e a fiscalização do Exército, incentivar adolescentes a atirar e liberar armas de uso pessoal entre policiais. Quer alvejar de morte o Estatuto do Desarmamento de 2003.

Nada que não soubéssemos. Quando era candidato, Bolsonaro prometeu transformar a Bancada da Bala na Bancada da Metralhadora. “A metralhadora vai defender a vida de cada um de nós e a liberdade desse povo, a liberdade de nosso Brasil”, disse há três anos. Esse celerado foi eleito mesmo assim.

Ninguém sabe direito o que está valendo no Brasil no tocante (sic) a porte e posse de armas. Vivemos um caos de decretos e normas. Amanhã, enfim, começa o julgamento virtual histórico do Supremo Tribunal Federal. Vai até o dia 23. Só o STF pode enterrar de vez os delírios bélicos do presidente. 

O país dos sonhos de Bolsonaro povoa meus pesadelos. O Exército não mais controlará munições. Civis poderão comprar até seis armas de fogo sem precisar mais de nenhuma justificativa. Cada cidadão poderá portar duas armas nas ruas. Atiradores desportivos e caçadores não precisarão se credenciar na polícia e no Exército e poderão portar armas carregadas. Esses são itens suspensos pela ministra Rosa Weber. Serão validados ou não pelo STF. 

Já é gravíssimo o que continua em vigor desde 2019. Armas que eram de uso restrito das forças de segurança, como pistola 9 mm e carabina .40, são permitidas entre cidadãos. Atiradores amadores podem comprar até 60 armas. Antes, eram 16. 

Armas de fogo registradas dobraram com Bolsonaro. De 638 mil a 1,3 milhão. A média diária do registro de armas por pessoas físicas na Polícia Federal saltou de 43 para 378. Por dia. Esse derrame aumenta desvios para a ilegalidade e criminalidade. Arma na gaveta agrava também crimes domésticos: 64% das mulheres assassinadas em 2020 levaram tiros. 

Em junho, no Rio de Janeiro, policiais federais apreenderam quase 500 carregadores de fuzil e pistola, entre eles os de tipo goiabada, importados, segundo a PF, por morador de favela para distribuição nos morros. O que aconteceu? Como o presidente tirou os carregadores da lista de produtos controlados pelo Exército, a empresa importadora exigiu a restituição da carga e ameaçou processar o policial que fez a apreensão.

Se o princípio é a autodefesa, por que um pai de família quer um fuzil? Isso beneficia quem? Os milicianos como Ronnie Lessa, acusado de matar Marielle Franco. 

Fuzil em casa, em vez de feijão, é crueldade. Perguntei à cientista política Ilona Szabó, do Instituto Igarapé, estudiosa da segurança pública, o que achou da declaração de Bolsonaro de que o povo armado jamais será escravizado.

“Historicamente essa frase tem sido usada por ditadores, como Mussolini na Itália, Hugo Chávez e Maduro na Venezuela e Papa Doc no Haiti. Todos criaram suas milícias particulares. Em um Estado Democrático de Direito, como o Brasil, o uso da força é excepcional. O Estado tem o monopólio de seu uso, e precisa garantir segurança para todos. Liberdade não se faz com armas”.

E o Congresso nada faz, sabemos por quê. Joga todas as batatas quentes no colo do Supremo. De mentiras a fuzis. 

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