sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Vera Magalhães - Queiroga cria tripla cortina de fumaça

O Globo

O médico Marcelo Queiroga completou seis meses à frente do Ministério da Saúde, no qual substituiu o general Eduardo Pazuello. Em meio ano, aceitou de bom grado a missão de converter-se num negacionista a serviço do pior do bolsonarismo, em vez de tentar consertar os erros do antecessor.

Nesta quarta-feira, usou os adolescentes como bucha de canhão para promover uma tripla cortina de fumaça para tentar esconder os persistentes e cada vez mais graves erros do governo no manejo da pandemia.

O anúncio intempestivo em que recomendou a interrupção da vacinação de adolescentes entre 12 e 17 anos que não tenham comorbidades pegou técnicos, especialistas, governadores, prefeitos e pais de todo o país desprevenidos. Levou mais caos e desinformação ao programa de imunização.

A vacinação dessas faixas etárias já começou em diversos estados. Tem a aprovação da Anvisa, a agência sanitária brasileira, que a manteve mesmo diante do recuo de Queiroga.

O ministro apresentou explicações incongruentes e inconclusivas, quando não mentirosas ou falaciosas, para justificar a decisão. Usou de forma leviana a morte de um adolescente sem ligação comprovada com a vacinação como argumento, expediente que o equipara aos negacionistas mais nocivos, como a deputada Bia Kicis.

Deturpou a diretriz da Organização Mundial da Saúde a respeito da imunização dos jovens, ao apontar uma inexistente alegação de falta de comprovação de segurança das vacinas já aprovadas.

Para colocar a cereja no bolo do show de desinformação, disse que outras vacinas que não a da Pfizer estão sendo usadas em adolescentes, sem, no entanto, mostrar planilhas com esses dados.

E por que esse cavalo de pau agora? Aí entra a tripla cortina de fumaça que Queiroga ajuda a espalhar. A suspensão da vacinação de adolescentes coincide com momento de apagão logístico no envio de vacinas. Várias cidades e estados sofrem com falta de remessas da AstraZeneca para segunda dose, e o “jeitinho” tem sido usar justamente a Pfizer, também o imunizante preferencial para a dose de reforço dos idosos.

Além disso, a confusão armada por Queiroga coincidiu com um caso com enorme potencial de escândalo e graves consequências para o governo Bolsonaro. Médicos e ex-médicos do grupo Prevent Senior revelaram que pacientes teriam sido usados sem consentimento próprio ou das famílias como cobaias humanas de um estudo sobre uso de medicamentos do “kit Covid”. Mais: efeitos adversos graves, inclusive mortes, de pacientes submetidos a esse experimento teriam sido omitidos em conclusões usadas fartamente como propaganda por Bolsonaro e seu gabinete paralelo de defesa de cloroquina e afins.

Ao criar a lambança da vacina de adolescentes, Queiroga tratou de tentar desviar o foco do país dessa bola de neve que pode levar seu chefe de cambulhada.

Por fim, o diversionismo ocorre quando a CPI se prepara para sua conclusão, com a colaboração de juristas insuspeitos como Miguel Reale Júnior, um dos autores do pedido de impeachment de Dilma Rousseff, que ajudarão a dar o estofo técnico ao relatório de Renan Calheiros.

Lamentável que um médico aceite penhorar seu diploma e sua ética para se prestar a um papel desses.

E trata-se de mais um tiro no pé: a população brasileira abraçou com entusiasmo a vacinação. Mesmo tendo sido sabotada por Bolsonaro, ela avança graças à expertise de décadas do SUS em campanhas de imunização.

Negar às famílias a vacina para seus adolescentes faz com que elas lembrem o trauma que foi até ela chegar ao braço de seus idosos, das pessoas com comorbidades, dos profissionais de saúde, dos adultos. Se alguém tinha esquecido o desastre que é esta gestão, Queiroga tratou de reavivar a memória de forma trágica.

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