Folha de S. Paulo
Nos precatórios, ministro apela ao tribunal
para que seja seu parceiro no calote a estados governados por oposicionistas
Paulo Guedes pode ser tão virulento como
Jair Bolsonaro. Eventualmente mais, já que os patógenos políticos e ideológicos
que vão em sua mente têm um pouco mais de bibliografia. Menos, é certo, do que
ele dá a entender. Não importam, como se sabe, os volumes que se leram, mas o
que se reteve do que foi lido. A metáfora é óbvia: traças também devoram livros
e não viram Schopenhauer.
Na fábula do infantilismo político que se
tentou construir no Brasil, o ministro
dito liberal conferiria uma face de eficácia e modernidade ao discurso
atrasado do chefe, um reacionário delirante. O enlace desses seres ditos
distintos e complementares era mera “fanfic” da direita xucra.
O ministro é o maior produtor de teses “ad hoc” do país. Em questão de horas, aquele que se diz pronto para uma interlocução madura entre os Poderes pode partir para a vulgaridade conspiratória e tratar negócios de Estado com a sofisticação de um bêbado inflamado de boteco.
Nem Bolsonaro nem ele próprio estão
preparados para seus respectivos papéis. Um foi eleito nas circunstâncias
conhecidas —e não vou sintetizá-las agora—, e o outro foi oferecido como âncora
de confiabilidade. No desenho da prancheta, Guedes blindaria a economia das
ignorâncias do supremo mandatário.
Durante algum tempo, a fantasia parecia
eficiente a depender do índice para o qual se olhasse. Mas eis-nos aqui: com a
inflação nas alturas e o crescimento do ano que vem caminhando para o buraco.
Guedes, claro!, tem os culpados —entre estes, estariam os “negacionistas” do
que ele considera sucessos inéditos de sua gestão. Parece-me desnecessário
esfregar os números na cara do ministro.
Interessa-me a questão política. Nesta
quarta-feira (15), num seminário em companhia de Luiz Fux, presidente do STF
(Supremo Tribunal Federal), o titular
da Economia fez um apelo para que o tribunal o ajude na questão
dos precatórios.
Se o governo tiver de pagar os R$ 89,1
bilhões que meteu no Orçamento de mentirinha, não sobram recursos
para turbinar o rebatizado Bolsa Família, entre outras dificuldades. Mais:
estimaram-se para este ano um INPC de 6,2% e um IPCA de 5,9%. A inflação está
na casa dos 9%. Um erro de análise de 50%!
No “Auxílio Brasil” está o fiapo da
esperança (re)eleitoral de Bolsonaro. Da “retomada em V”, vai restar, no ano
que vem, um traço, com possibilidade razoável de recessão. Culpa dos
“negacionistas” do seu sucesso! Fizeram disparar os preços dos alimentos, dos
combustíveis e da energia, sem contar a pressão cambial, que vira inflação. Aí
o Banco Central, agora “independente”, eleva juros, o que deprime o
crescimento. Negacionistas!
A PEC
dos precatórios é, por óbvio, um calote. Existe o risco objetivo de
que o Supremo a declare inconstitucional se aprovada pelo Congresso. Assim, em
seminário para pessoas de fino trato, Guedes dirigiu a Fux um “pedido
desesperado de socorro”. Simulava o padrão de um homem do diálogo. Ali, não era
o caso de excitar e incitar a turba. O tom mudaria radicalmente, no entanto,
numa entrevista poucas horas depois.
Aí, falando à militância, mandou bala:
“Curiosamente, [os precatórios] caem sobre nosso governo e [vão] para dois ou
três estados que são oposicionistas. É evidente que não vou achar que é a
politização da Justiça. Não vou achar. Não posso acreditar nisso, mas eu tenho
que pedir ajuda ao Supremo”.
Ele se referia a Ceará, Bahia e Pernambuco,
que não são formados por “oposicionistas”, mas por cearenses, baianos e pernambucanos.
Bolsonaro não anda muito popular por lá e em lugar nenhum. O truque retórico é
primário, vulgar. Obviamente, está sugerindo, ainda que o negue de modo
irônico, a existência de uma ação concertada da Justiça em benefício das
oposições.
Logo, o apelo de Guedes a Fux se esclarece:
está pedindo, de forma “desesperada”, que o Supremo seja parceiro no calote a
estados governados por oposicionistas. A lógica embutida na formulação
delinquente é dele, não minha.
O STF, assim, terá de decidir se colabora
com o governo, mas não com uma decisão pautada pela razoabilidade e pela
economicidade. Trata-se de uma empreitada contra as oposições —eleitoreira,
portanto. As palavras fazem sentido.
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