sexta-feira, 17 de setembro de 2021

José de Souza Martins* - Se houver amanhã

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Se houver amanhã no horizonte do Brasil que está sendo semeado hoje, a pátria que sobrar não terá como não erguer, ainda que às gargalhadas, um monumento de gratidão a quem a governou de 2018 até quase 2022.

Despistado, infiltrado no movimento autoritário e direitista chamado bolsonarismo, ninguém percebeu, nem eu, que Jair Messias, na ação demolidora das instituições democráticas, foi demolindo a si mesmo e suas criaturas. Nas irracionalidades politicamente destrutivas de seus atos, Bolsonaro é consequência e avesso do bolsonarismo. De outro modo, seus próprios cúmplices disseram isso após seus atos do dia seguinte ao do dia da pátria.

Nesse avesso, seu perfil revelou não caber na política de seu tempo. Versão tropical e invertida de Procusto, foi cortando as pernas alheias para não cortar as próprias, a fim de que coubessem no desconforto do corpo redutivo do Estado pessoal e condominial, imaginário, de suas limitações autoritárias.

Política em mãos erradas é uma faca de dois gumes. Isso quer dizer que nesse governo, de amadores, sem o saber e sem a mínima consciência política, Bolsonaro é um importante aliado das oposições. Sua governança errática e aparentemente desorientada, rentista e anticapitalista, sua palavra autoritária e sem sentido, tem aberto brechas e rombos nas toscas concepções civis e militares que são o fundamento ideológico de seu regime anômalo. É desafio a suas vítimas a tomarem a palavra e a tomarem decisões para desconstruir o opressor.

Cada incongruência, cada ato irracional, cada gesto politicamente imprudente, cada bobagem dita e feita, acorda as consciências para as consequências políticas de votar no desconhecido com a intenção de votar contra alguém conhecido.

Nas manifestações de 12 de setembro, numerosos participantes que pediam o impedimento de Bolsonaro haviam sido ativistas dos procedimentos que, na eleição de 2018, o levaram ao poder.

Fatos políticos têm conexões invisíveis, a alguma distância dos atores que estão no palco das encenações. Pequenos fatos podem se tornar causa de grandes consequências, ainda que lentas. Se retornarmos ao espetáculo acabrunhante da reunião de governo de 22 de abril de 2020, poderemos constatar, nas quedas em cascata de gente presunçosa e supostamente poderosa, o quanto os donos do poder não são necessariamente donos da verdade política do que fazem. Seus efeitos se desdobram antagonicamente.

O desencontro entre as intenções governistas das manifestações do dia 7 e a reação de governistas ao que foi dito e ao que resultou do que dito pôs em evidência alguns dos limites das cumplicidades antipolíticas e desinformadas.

Esse tipo de alienação política é decorrência dos mecanismos de reprodução das relações sociais, de recriação da ordem e do que lhe é próprio e reiterativo. Mas lhe é própria, também, a acumulação de contradições que tornam a descontinuidade e a ruptura inevitáveis e necessárias.

Bolsonaro, em todos os seus atos anômalos e anti-históricos, é a personificação irremediável de nossas contradições. O que ele faz não é o que ele pensa estar fazendo. Seus pronunciamentos, seus inimigos imaginários, são expressões das falsas certezas do poder.

Não obstante, nas relações sociais e no poder que lhes corresponde, sempre há vontades e protagonismos não capturados. Insubmissos porque a situação social dos que ficam à margem não se encaixa nas soluções dos que marginalizam e disso se beneficiam. É o que estamos vivendo intensamente e é o que desmonta o presente e o futuro do bolsonarismo.

Essas situações sociais tendem a se agrupar e a se identificar antagonicamente aos fatores de continuidade e reprodução social e política. São irredutíveis aos requisitos de dominação dos grupos e das categorias que de sua cumplicidade precisam.

São situações que podem se desdobrar na consciência de que suas necessidades colocadas à margem são necessidades radicais, cujo atendimento pede inovações sociais e políticas, e não repetições e reiterações. O que depende de uma coalizão política insurgente desses resíduos, demonstrou-o Henri Lefebvre.

Sua viabilidade depende, por sua vez, de mediações políticas que lhe traduzam o querer social em querer político e em projeto que lhe abra espaço e lugar numa nova estrutura de poder, o da diferença compartilhada e das carências próprias reconhecidas.

Diferentes expressões desse inconformismo residual ganharam visibilidade justamente nesses dias à margem da teatralização do ensaio totalitário de um golpe de Estado proclamado. Manifestações de diferentes sujeitos que falam movidos por valores históricos que se tornam motivação de insurgência em relação a valores redutivos, amorais e antissociais.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Linchamentos - a justiça popular no Brasil" (Contexto).

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