quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Tiago Cavalcanti* - Pilares de uma sociedade

Valor Econômico

Focar gastos nos mais pobres e na formação das pessoas são princípios fundamentais

Apesar de trabalhar na mesma universidade e Faculdade de Economia onde John Maynard Keynes - um dos economistas mais influentes do século XX - estudou e lecionou, nunca fui keynesiano. Pelo contrário, até minha pesquisa tem certa distância em relação às questões que Keynes se preocupava. Isso, contudo, não implica que deixo de ter admiração por alguns de seus pensamentos e sua trajetória como acadêmico e homem público.

Uma das famosas frases de Keynes é a de que “no longo prazo todos estaremos mortos”. Ele escreveu esta frase em seu livro “A Tract on Monetary Reform” de 1923. É importante entender o contexto da célebre tirada. Keynes criticava a teoria econômica defensora de que as crises econômicas seriam passageiras e fariam parte do sistema econômico, assim os governos não deveriam intervir com políticas contra-cíclicas de curto prazo, já que a economia tenderia, no longo prazo, para um equilíbrio de pleno emprego. Essa batalha, na prática, foi vencida por Keynes, já que a quase totalidade dos governos passaram a implementar políticas para manter o emprego e a renda no curto prazo.

A frase, no entanto, não necessariamente pressupõe que Keynes não se preocupava com o longo prazo, como às vezes a mesma é empregada. Em um ensaio marcante, “Economic Possibilities for our Grandchildren”, escrito em 1928, mas publicado em 1931, Keynes refletiu sobre como estariam as sociedades modernas 100 anos depois, ou mais ou menos nos dias atuais. O texto, de cunho especulativo, não deixa de ser uma crítica à sociedade em que Keynes vivia.

O economista inglês arguiu que a Europa e os EUA estariam hoje com uma renda per capita de 4 a 8 vezes maior do que em 1928. De fato, a renda per capita americana e da maioria dos países europeus estão cerca de 8 vezes acima dos valores observados antes da crise de 1929. O motor dessa transformação no padrão de vida teria origem nas inovações tecnológicas e na acumulação de capital.

Keynes fez uma outra previsão de como estaríamos trabalhando na atualidade. Segundo ele, na maioria dos países avançados, o número médio de horas trabalhadas por semana seria atualmente de 15 horas ou 3 horas por dia. Apesar de levantar a hipótese sobre as mudanças tecnológicas que poderiam substituir a mão de obra (desemprego tecnológico, em suas palavras), essa transformação no número de horas trabalhadas viria de escolhas voluntárias dos trabalhadores. Os indivíduos, ao invés de procurarem o maior acúmulo de riqueza e do dinheiro, após um determinado nível de renda, iriam buscar outras formas de prazer, que viriam com o lazer e portanto menos tempo dedicado ao trabalho.

Nesse aspecto Keynes não acertou. O número médio de horas trabalhadas caiu na maioria dos países e hoje trabalhamos menos horas que nossos avós. Porém, estamos longe do número previsto por Keynes e mais perto do número médio de horas trabalhadas por nossos avós. Ele especulava que “quando a acumulação de riqueza não tiver alta importância social, haverá uma grande mudança nos códigos morais”. O mesmo não descartou a hipótese de que o desejo insaciável de status social poderia ser uma barreira a essas mudanças nas normas sociais e hábitos de consumo. Mas quando as necessidades básicas de sobrevivência fossem superadas, o ser humano iria procurar outras formas de prazer.

Não existem até agora sinais de que chegaremos nesse estágio de sociedade imaginado por Keynes. Ele tinha em mente que os ativos seriam melhor distribuídos e portanto uma maior quantidade de pessoas poderia usufruir do lazer sem comprometer necessidades básicas de consumo, através do efeito riqueza. Em contraste, de acordo com os dados do Federal Reserve de Saint Louis, os 50% mais pobres dos Estados Unidos são proprietários de apenas 2% da riqueza americana. Por outro lado, os 10% mais ricos são proprietários de quase 70% da riqueza daquele país. A desigualdade de riqueza aumentou substancialmente nas últimas décadas nos Estados Unidos e outros países ocidentais.

Apesar de avanços significativos na renda per capita, o salário do trabalhador médio permaneceu estagnado nas últimas décadas nos principais países avançados. As inovações tecnológicas recentes aumentaram a produtividade principalmente dos trabalhadores qualificados.

Segundo Keynes, o caminho para uma sociedade com 15 horas de trabalho médio por semana viria a partir de quatro pilares básicos: o controle populacional, a determinação para evitar guerras e conflitos civis, margem fixa de acumulação de riqueza e a disponibilidade em deixar a ciência definir e resolver os problemas de sua competência.

O controle populacional é questão resolvida na maioria dos países. Os conflitos bélicos entre países avançados são cada vez mais raros. Apesar da taxa de poupança ter caído em vários desses países, não me parece que a acumulação de riqueza seja um problema fundamental.

A questão principal parece ser de como aumentar a produtividade do trabalho dos indivíduos mais pobres e distribuir parte da riqueza, porém fortalecendo os incentivos que remuneram a criatividade, o esforço e a tomada de riscos. Focar gastos nos mais pobres e na formação das pessoas são princípios fundamentais. É preciso também evitar isonomias e aumentos automáticos de salários, para que sejam estimulados ganhos de produtividade.

Quanto ao papel central da ciência, um dos pilares levantados por Keynes, o ataque recente contra cientistas e instituições de pesquisa por parte de governos populistas e obscurantistas, é uma gravíssima preocupação. A pandemia deixou evidente a capacidade do ser humano e dos cientistas em desenvolverem tecnologias para resolver desafios que possam ameaçar nossa existência.

As crescentes ameaças à sociedade provocadas pelas mudanças climáticas é certamente um problema de competência da ciência, que requer cooperação e ajustes estruturais em nossos padrões de consumo e de valores. A preservação e valorização dos nossos ativos naturais devem ter centralidade, tanto por parte dos indivíduos quanto dos governos.

Um ponto esquecido por Keynes, que ao meu ver é fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade, é o fortalecimento da liberdade de expressão e das instituições democráticas. Sem tais bases, caminhamos para o autoritarismo, desprezando os direitos humanos e destruindo valores democráticos universais.

*Tiago Cavalcanti é professor da Universidade de Cambridge e da FGV-SP.

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