Valor Econômico
Focar
gastos nos mais pobres e na formação das pessoas são princípios fundamentais
Apesar
de trabalhar na mesma universidade e Faculdade de Economia onde John Maynard
Keynes - um dos economistas mais influentes do século XX - estudou e lecionou,
nunca fui keynesiano. Pelo contrário, até minha pesquisa tem certa distância em
relação às questões que Keynes se preocupava. Isso, contudo, não implica que
deixo de ter admiração por alguns de seus pensamentos e sua trajetória como
acadêmico e homem público.
Uma das famosas frases de Keynes é a de que “no longo prazo todos estaremos mortos”. Ele escreveu esta frase em seu livro “A Tract on Monetary Reform” de 1923. É importante entender o contexto da célebre tirada. Keynes criticava a teoria econômica defensora de que as crises econômicas seriam passageiras e fariam parte do sistema econômico, assim os governos não deveriam intervir com políticas contra-cíclicas de curto prazo, já que a economia tenderia, no longo prazo, para um equilíbrio de pleno emprego. Essa batalha, na prática, foi vencida por Keynes, já que a quase totalidade dos governos passaram a implementar políticas para manter o emprego e a renda no curto prazo.
A
frase, no entanto, não necessariamente pressupõe que Keynes não se preocupava
com o longo prazo, como às vezes a mesma é empregada. Em um ensaio marcante,
“Economic Possibilities for our Grandchildren”, escrito em 1928, mas publicado
em 1931, Keynes refletiu sobre como estariam as sociedades modernas 100 anos
depois, ou mais ou menos nos dias atuais. O texto, de cunho especulativo, não
deixa de ser uma crítica à sociedade em que Keynes vivia.
O
economista inglês arguiu que a Europa e os EUA estariam hoje com uma renda per
capita de 4 a 8 vezes maior do que em 1928. De fato, a renda per capita
americana e da maioria dos países europeus estão cerca de 8 vezes acima dos
valores observados antes da crise de 1929. O motor dessa transformação no
padrão de vida teria origem nas inovações tecnológicas e na acumulação de
capital.
Keynes
fez uma outra previsão de como estaríamos trabalhando na atualidade. Segundo
ele, na maioria dos países avançados, o número médio de horas trabalhadas por
semana seria atualmente de 15 horas ou 3 horas por dia. Apesar de levantar a
hipótese sobre as mudanças tecnológicas que poderiam substituir a mão de obra
(desemprego tecnológico, em suas palavras), essa transformação no número de
horas trabalhadas viria de escolhas voluntárias dos trabalhadores. Os
indivíduos, ao invés de procurarem o maior acúmulo de riqueza e do dinheiro,
após um determinado nível de renda, iriam buscar outras formas de prazer, que
viriam com o lazer e portanto menos tempo dedicado ao trabalho.
Nesse
aspecto Keynes não acertou. O número médio de horas trabalhadas caiu na maioria
dos países e hoje trabalhamos menos horas que nossos avós. Porém, estamos longe
do número previsto por Keynes e mais perto do número médio de horas trabalhadas
por nossos avós. Ele especulava que “quando a acumulação de riqueza não tiver
alta importância social, haverá uma grande mudança nos códigos morais”. O mesmo
não descartou a hipótese de que o desejo insaciável de status social poderia
ser uma barreira a essas mudanças nas normas sociais e hábitos de consumo. Mas
quando as necessidades básicas de sobrevivência fossem superadas, o ser humano
iria procurar outras formas de prazer.
Não
existem até agora sinais de que chegaremos nesse estágio de sociedade imaginado
por Keynes. Ele tinha em mente que os ativos seriam melhor distribuídos e
portanto uma maior quantidade de pessoas poderia usufruir do lazer sem
comprometer necessidades básicas de consumo, através do efeito riqueza. Em
contraste, de acordo com os dados do Federal Reserve de Saint Louis, os 50%
mais pobres dos Estados Unidos são proprietários de apenas 2% da riqueza
americana. Por outro lado, os 10% mais ricos são proprietários de quase 70% da
riqueza daquele país. A desigualdade de riqueza aumentou substancialmente nas
últimas décadas nos Estados Unidos e outros países ocidentais.
Apesar
de avanços significativos na renda per capita, o salário do trabalhador médio
permaneceu estagnado nas últimas décadas nos principais países avançados. As
inovações tecnológicas recentes aumentaram a produtividade principalmente dos
trabalhadores qualificados.
Segundo
Keynes, o caminho para uma sociedade com 15 horas de trabalho médio por semana
viria a partir de quatro pilares básicos: o controle populacional, a
determinação para evitar guerras e conflitos civis, margem fixa de acumulação
de riqueza e a disponibilidade em deixar a ciência definir e resolver os
problemas de sua competência.
O
controle populacional é questão resolvida na maioria dos países. Os conflitos
bélicos entre países avançados são cada vez mais raros. Apesar da taxa de
poupança ter caído em vários desses países, não me parece que a acumulação de
riqueza seja um problema fundamental.
A
questão principal parece ser de como aumentar a produtividade do trabalho dos
indivíduos mais pobres e distribuir parte da riqueza, porém fortalecendo os
incentivos que remuneram a criatividade, o esforço e a tomada de riscos. Focar
gastos nos mais pobres e na formação das pessoas são princípios fundamentais. É
preciso também evitar isonomias e aumentos automáticos de salários, para que
sejam estimulados ganhos de produtividade.
Quanto
ao papel central da ciência, um dos pilares levantados por Keynes, o ataque
recente contra cientistas e instituições de pesquisa por parte de governos
populistas e obscurantistas, é uma gravíssima preocupação. A pandemia deixou
evidente a capacidade do ser humano e dos cientistas em desenvolverem
tecnologias para resolver desafios que possam ameaçar nossa existência.
As
crescentes ameaças à sociedade provocadas pelas mudanças climáticas é
certamente um problema de competência da ciência, que requer cooperação e
ajustes estruturais em nossos padrões de consumo e de valores. A preservação e
valorização dos nossos ativos naturais devem ter centralidade, tanto por parte
dos indivíduos quanto dos governos.
Um
ponto esquecido por Keynes, que ao meu ver é fundamental para o desenvolvimento
de uma sociedade, é o fortalecimento da liberdade de expressão e das
instituições democráticas. Sem tais bases, caminhamos para o autoritarismo,
desprezando os direitos humanos e destruindo valores democráticos universais.
*Tiago Cavalcanti é professor da Universidade de Cambridge e da FGV-SP.
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