O Globo / O Estado de S. Paulo
Não há nada pior do que assistir a uma
conspiração contra instituições. Ver as molduras que organizam a vida ser
atacadas. Quando Shakespeare diz que o mundo é um palco, e todos somos atores,
revela o elo entre o todo (o roteiro como instituição) e a parte (a encenação
como sua manifestação).
Encenar é interpretar. Nossas falas não
seriam entendidas se não falássemos todos a língua portuguesa. Para que o drama
se cumpra, ele tem de existir antes dos atores que o encenam e dos espectadores
capazes de “deduzir” de suas cenas o significado que nele se encerra.
Somos simultaneamente demarcadores e
demarcados por molduras e nos assustamos quando elas são rompidas. Imagine um
juiz arrotando depois de uma sentença; um senador arrumando a dentadura numa
CPI; ou um presidente ameaçando dar porrada em jornalistas...
Molduras revelam níveis de realidade.
Indicam o que é e o que não é. O que você deduz quando, em Chicago, vê uma cena
de perseguição policial? Perplexo, você exige uma moldura para assentar o que
testemunhou. Foi um assalto? Não, diz alguém o acalmando, é o Brian De Palma
refilmando “Os intocáveis”.
A resposta, roubada de um livro do
sociólogo Erving Goffman, satisfaz seu senso de realidade. A expressão “é sério”
faz parte de um mundo infiltrado por brincadeiras, mentiras, trotes e fake news
de todos os tipos de moldura.
O golpe pode ser lido como uma moldura implantada numa hora de indecisão. O que hoje amedronta é a confusão de molduras promovendo insuportáveis inseguranças. Quando sentenças e operações contra uma corrupção abusiva são neutralizadas, e poderosos são inocentados, cria-se um paradoxo porque foi justamente sua exposição que elegeu o “supremo mandatário da nação”, que hoje atua numa clara desconstrução institucional da República.
O que se pode deduzir quando o Poder
Executivo — esse poder desempenhado por um único ator, que, por isso mesmo, tem
muito mais potência e, consequentemente, uma implacável responsabilidade numa
sociedade familística e populista — produz imprecisão e insegurança?
A expressão “esticar a corda” é óbvia. Mas
o que fazer quando o cabo de guerra é parte do discurso de um presidente
leniente com seus aliados (e filhos) e implacável com seus adversários, que
toma como inimigos mortais? Um presidente que quer demitir ministros do STF e
assustar o Congresso Nacional no dia de uma votação contrária a um dos seus
projetos mais retrógrados — mudar a forma de votação? Um presidente que nega
vacinas e, assim, recusa a ordem biológica que é a moldura da vida no planeta?
Testemunhamos um claro projeto de destruir
a interdependência clássica dos três Poderes constitutivos da República, com a
intenção de reduzi-los ao Executivo. O que fazer com um presidente cuja rotina
objetiva é destruir molduras e recusar a realidade, como faz prova a
sabotagem-negociata das vacinas, ao lado do descumprimento das promessas que o
elegeram?
Bolsonaro realiza o contrário do que
prometeu. Ele é um presidente embaralhador. Para seus seguidores, é o “mito”
redentor de um Brasil cuja história política vive de personagens
salvacionistas, “fortes” e “novos”, esses sinalizadores de decepcionantes
molduras de progresso e de regressões intoleráveis.
Enquanto, pois, tentamos deduzir o sentido
de tantas irracionalidades, está em curso uma nova moldura personalista
agressiva, para a qual não há resposta dentro da nossa moldura de cordialidade
e jeitinho.
Jair Messias Bolsonaro é um caso de dedução
eleitoral equivocada. Eleito com a promessa de ordenar e domesticar o familismo,
o fanatismo ideológico e a corrupção, ele realiza o justo oposto, com o ônus de
a isso adicionar uma tenaz desconstrução. O que deduzir disso tudo?
Somos pródigos em tomar — ou deduzir — gato
por lebre.
Uma anedota ilustra o que passamos.
Sherlock Holmes e o Dr. Watson estavam
acampando. Armaram a barraca sob as estrelas e foram dormir.
No meio da noite, Holmes acordou e disse:
— Watson, olhe para as estrelas e me diga o
que está vendo.
— Estou vendo milhares e milhares de
estrelas.
Holmes perguntou:
— E o que você deduz disso?
Watson respondeu:
— Ora, se existem muitos milhares de
estrelas e se, em torno delas, existirem planetas, é provável que alguns sejam
como a Terra. E, se houver outros como a Terra, é possível também que haja
vida.
Holmes então disse:
— Watson, seu idiota, isso quer dizer que
alguém roubou nossa barraca!
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